Cinque Terre
GT 005. Agências materiais e espirituais no cotidiano: experiências e narrativas de coexistência
Martina Ahlert (Universidade Federal do Maranhão) - Coordenador/a, João Frederico Rickli (UFPR) - Coordenador/a
Diversas pesquisas em antropologia têm se interessado pelos modos como as pessoas mobilizam agências materiais e espirituais em situações de lutas, disputas e construções identitárias. Entidades como encantados, espíritos, fantasmas, demônios, o próprio Espírito Santo, entre outras; e objetos “animados" como imagens, amuletos, fotografias e a bíblia, por exemplo, podem participar do dia a dia das pessoas em diferentes contextos. Essas agências não estão limitadas a planos extraordinários, circunscritos aos domínios do explicitamente religioso. Antes, elas permeiam escolhas, decisões e atitudes cotidianas em relação aos mais diversos temas, e seus efeitos se materializam de formas variadas na experiência. Essas situações e ações apontam em direção à não exclusividade humana nos modos de viver, de dar forma e sentido à existência. Este Grupo de Trabalho pretende reunir etnografias e pesquisas de caráter etnográfico em arquivos que abordem essas experiências e a produção de narrativas a elas vinculadas. De um ponto de vista teórico, interessam-nos três pontos, sobretudo: em primeiro lugar, a análise das disputas e controvérsias em torno da legitimidade e autenticidade dessas narrativas e experiências. Em segundo, a questão da coexistência e coabitação no mundo, que questiona leituras lineares sobre o tempo e a história. Finalmente, a análise de situações em que as fronteiras e limites daquilo que se caracteriza como religioso são desafiados pelos próprios dados etnográficos.
Resumos submetidos
A jurema Fulorou: a simbólica feminina na Jurema Sagrada, uma etnobiografia de Mestra Paulina.
Autoria: Izabella Barbosa da Silva
Autoria: Quando começamos a nos interessar pelo sagrado feminino na Jurema, imediatamente nos chamou atenção o universo das Mestras, entidades femininas - com características semelhantes à das pombas-giras da Umbanda e do Candomblé - com histórico de sensualidade e prostituição. Diferente das Caboclas e das Pretas-Velhas que se aproximam muito mais de um ideal de “pureza”, as Mestras destacam-se pela sua postura transgressora e “impura”. As divindades presentes no culto a Jurema trazem consigo uma história de vida que passa a compor a mitologia da Jurema e a influenciar na sua prática de culto, formando um panteão infinito de entidades, que são sagradas, mas que ao mesmo tempo carregam características tão humanas quanto os que as veneram. A curiosidade em conhecer mais sobre as Mestras, nos levou a ouvir e a ler muitas narrativas a respeito destas moças que viveram em sua maioria no Nordeste brasileiro em séculos passados, prostituindo-se para sobreviver e repetidamente passaram por episódios de mortes trágicas. Como nas narrativas sobre Mestra Paulina, menina cigana, perdeu os pais cedo durante uma viagem de navio com destino ao Porto de Jaraguá em Maceió-Al, ao desembarcar foi vendida para uma Dona de Prostíbulo. Conta-se que, Paulina vendia frutas na beira do cais na intenção de juntar dinheiro e fugir da exploração e dos maus tratos no prostíbulo, diz-se ainda que não media esforços para proteger as outras meninas das maldades de sua tutora – motivo pelo qual veio posteriormente a ser reconhecida como protetora das mulheres. Até que então a bela moça consegue fugir para Recife-Pe, onde veio a habitar a rua da Guia e trabalhar no Cais do Apolo, onde era desejada por muitos homens e odiada por suas esposas. Paulina morre tragicamente, assassinada com sete facadas por um de seus amantes, acredita-se que por motivo de ciúmes. O que se conta sobre a vida de mestra Paulina não difere muito da história de outras mestras, envolvidas no universo de exploração sexual, violência e marginalidade. Escolhemos nos debruçar então sobre a “vida” da jovem menina cigana ao encontrar no interior de Alagoas um grupo de praticantes da Jurema, liderado por uma jovem sacerdotisa discípula de Mestra Paulina, e que apresenta grande confiança e devoção a esta mestra. Então delimitamos como universo de pesquisa, o Sagrado Feminino na Jurema Sagrada, a partir da etnobiografia da entidade Mestra Paulina entrecruzada com a da sua discípula, na busca por compreender as estratégias e agenciamentos desenvolvidos pelas figuras femininas presentes neste culto – seja no plano material ou espiritual, face a esta marginalização e invisibilidade que perpassa todo o culto a Jurema Sagrada, e se torna ainda mais pungente no que se refere ao feminino.
A mulher e seu quintal, caminhadas por um universo mágico-místico-transformacional
Autoria: Lanna Beatriz Lima Peixoto
Autoria: Este work apresenta reflexões acerca do entrelaçamento de temas como gênero e paisagem a partir da experiência etnográfica no quintal de uma mulher que, segundo sua comunidade de pertença, “vira bicho”. O que está ligada à categoria nativa de populações amazônicas, “engerar”, referente a um processo mágico de metamorfose. Pressupõem um universo transformacional no qual um humano assume forma, aparência e comportamento de outros animais e vice-versa, envolvendo o deslocamento de perspectivas e a constituição de paisagens configuradas a partir da transformação, bem como de trânsito de corpos e subjetividades, respectivamente. Esta capacidade pode advir de um pacto feito com entidades sobrenaturais ou acompanha a pessoa desde o nascimento (de caráter hereditário) e que, na região estudada, atinge com mais frequência mulheres. O encontro com esta mulher se deu na Comunidade Quilombola de Mangueiras, na ilha do Marajó, estado do Pará. Durante uma pesquisa sobre as relações estabelecidas entre mulheres e plantas nos quintais quilombolas. Nestes espaços são estabelecidos vínculos complexos entre os elementos que os compõem. É o lugar da morada em que o humano estabelece laços com os não humanos e com o si-mesmo em movimento dialético, onde se põe em perspectiva e é perspectivado. Os limites se definem e se borram em constante (re)criação. É onde se produzem cotidianamente os sentidos do ser e estar no lugar à medida em que há uma coabitação entre os elementos humanos e não humanos, que, por sua vez, institui um movimento criativo, uma ético-estética de atuação e interação com ele. Esta senhora é referência na comunidade quanto ao cultivo e conhecimento sobre plantas e pela relação de proximidade que tem com animais e entes sobrenaturais, a ponto de com eles confundir-se ou transmutar-se. Seu quintal é como uma outra dimensão dentro da comunidade, um universo íntimo e particular que só ela tem acesso em sua amplitude. Um quintal-floresta, quintal-cosmos, quintal-mulher, mulher-floresta, mulher-bicho, sua morada. Desde o início da pesquisa fui sendo guiada pelos passos dessa mulher no seu quintal, o lugar onde os vizinhos dizem ocorrer sua transformação. As caminhadas por entre as árvores, vasos e baldes de plantas pendurados e espalhados por todo terreno iam evocando imagens, memórias sobre o local, a família, de momentos nele vividos, sobre as plantas e para que serviam, sobre os animais que ali habitam, também sobre si e seus sonhos, desenhando a (con)figuração daquela paisagem, uma (co)habitação. O entrecruzar das narrativas da mulher e dos filhos, familiares e vizinhos sobre sua capacidade transformacional desvela uma intrincada trama mágico-místico-religiosa, que diz muito sobre a formação do sistema de conhecimento desse coletivo quilombola.
A Perspectiva dos Apãniekra-Canela em relação às imagens fotográficas
Autoria: Daiana Gomes de Almeida
Autoria: O artigo trata-se das perspectivas de alteridade dos wajacás (curandeiros pertencentes aos Apãniekra- Canela) em relação a algumas imagens que lhes foram apresentadas. Essas imagens são de pessoas e acontecimentos da própria aldeia, que foram capturadas pelo pesquisador e orientador. A pesquisa baseia-se na perspectivismo ontológico e privilegia o entendimento que ultrapassa a percepção física aparente das coisas, ressaltando a alteridade como as diferenças entre determinados pontos de vista. A alteridade das sociedades ameríndias das terras baixas da América do Sul é fundamental para o entendimento do cosmo e das relações entre pessoas e o meio ambiente que habitam diversos seres de ordens distintas. Nessa perspectiva, os objetos e coisas são de extrema relevância para entender os processos sociais do cotidiano. A pesquisa teve como instrumento metodológico, a pesquisa da pesquisa de campo e da observação participante, investida em diálogos; oficinas com toda a comunidade apãniekra; oficinas com os principais especialistas e oficinas exclusivamente com os wajacás em suas respectivas casas (inkre). A mesma foi realizada privilegiando dois períodos bem distintos para os Apãniekra: o período da seca (catamejê) e o período das chuvas (wakemejê). Levando em consideração as informações obtidas durante a pesquisa de campo (oficinas e diálogos), podemos dizer que os wajacás apresentam um modo de ver as coisas ao nosso redor distintamente de como nós enquanto não indígenas vemos. O que para uns parece uma simples imagem, aos olhos dos curandeiros Apãniekra-canela pode ser de alta relevância aos processos sociais dentro da comunidade interferindo a varias instâncias que ultrapassam a esfera da fisicalidade. Durante a pesquisa de campo surgiram outras questões de vários gêneros e perspectivas, como por exemplo, as investidas de feitiçaria que os Apãniekra enfrentam e a perda dos principais wajacás que estão relacionados diretamente com o desalinhamento que as pessoas de modo geral estão vivendo, por exemplo, o desmatamento, os casamentos interétnicos, aumento exagerado de uso de produtos industrializados que de maneira geral estão levando os Apãniekra a mudarem seus hábitos alimentares. Outro fator importante é a respeito das cantorias que quase não existe mais na aldeia. Contudo, o que mais nos preocupou foi à vida dos wajacás, pois em um período de menos de dez anos, faleceram cinco grandes curandeiros.
A quase morte de um chefe: reflexões acerca da cosmopolítica dos Ikólóéhj Gavião em tempos de proeminência do cristianismo fundamentalista.
Autoria: Lediane Fani Felzke
Autoria: Uma parcela significativa dos Ikólóéhj Gavião, povo tupi de Rondônia, considera-se crente em razão de mais de cinquenta anos de atuação de uma missão fundamentalista em suas aldeias. As festas com bebida fermentada e com a presença dos povos celestiais e subaquáticos e dos demiurgos estão em suspenso. No entanto, um fato recente recolocou em cena elementos subsumidos na atual configuração cosmopolítica deste povo tupi. Em abril de 2017 o cacique (zavidjaj) Sebirop ficou gravemente enfermo e foi internado às pressas no hospital, recuperando-se dias depois. Tal evento suscitou uma consternação entre os parentes. Os mais próximos compreenderam que não se tratava de uma doença física, mas sim espiritual, pois este líder “passou pela morte e reviveu”. Fui informada de que uma transição xamânica estaria em curso, ou seja, o zavidjaj estaria se tornando vaváh (pajé). Esta situação, neste momento em que a maioria dos Ikólóéhj Gavião está envolvida com a religião “dos brancos”, o cristianismo fundamentalista, ao qual eles incorporaram festas dançantes até o amanhecer; reforça a percepção de que o xamanismo está presente na vida ikólóéhj a despeito da ausência de xamãs que atuem abertamente na comunidade. Percebe-se que há disputas de discursos em torno dos fatos envolvendo entes cosmológicos. Tais discursos variam entre a negação da sua presença até a aceitação da convivência entre os deuses dos brancos e dos indígenas. A quase morte de Sebirop suscitou em alguns uma discussão que parecia estar encoberta pela adesão ao cristianismo fundamentalista, qual seja, a presença dos aliados ancestrais e das gentes dos planos cosmológicos, aos quais os brancos chamam de espíritos, entre os Ikólóéhj Gavião; e a insistência destas gentes em manter relações sociais com seus amigos humanos.
Agências espirituais em burocracias acadêmicas: Os motivos e os circuitos do povo de santo na trajetória acadêmica.
Autoria: Luiz Paulo Carvalho Pires de Oliveira
Autoria:

Este work é um desdobramento de reflexões a respeito da produção de etno-biografias, empreendimento teórico-metodológico que busca compor estrategias criativas em torno da relação entre produção de biografias e descrições de alteridade, exercitado em works que buscam produzir cenários teóricos a respeito do uso biográfico na antropologia como visto em 'Etnobiografia: subjetividade e etnografia' de Marco Antônio Gonçalves , ou em experimentações biográficas como a trajetória entidades espirituais, de doenças, e de outros seres, como em ' Individuação biográfica e o poder das estórias ' de Vânia Cardozo . Assim, derivando desta discussão , este artigo trata de pontos dentro da trajetora acadêmica de dois filhos de santo no candomblé de Salvador, que também são pesquisadores acadêmicos na área de antropologia, e a participação constitutiva das entidades que os acompanham em decisões, processos, e confirmações em seus circuitos de conivência acadêmica. Abordando especificamente o processo na aprovação de um concurso acadêmico de um dos sujeitos, e o desenvolvimento do mestrado do outro. Tratando, da convivência de entidades espirituais em ambientes e processos acadêmicos, bem como, a capacidade dessas entidades em influenciar processos burocráticos institucionais. Desa forma, o artigo ancora o desenvolvimento de três questões, a primeira ao relatar o contexto acadêmico, a diversidade de sujeitos que habitam e constituem o espaço de produção acadêmica antropológica, e as formas de o composição do conhecimento antropológico. A segunda, aponta para as fronteiras entre os contextos de existência, observando que a atuação das entidades é desenvolvida em espaços acadêmicos, e não em contextos restritos ao espaço religioso, ou cotidiano dos terreiros de candomblé, mas em processos institucionais acadêmicos, dessa forma, fomentando pontos de elaboração a respeito da fronteiras de convivência entre cotextos culturais. Em terceiro, o artigo estabelece pontos de contribuição e diálogo entre a produção de experimentações metodológicas na produção de etino-biografias, tendo em vista a produção de uma narrativa que envolve a trajetória dos intelectuais acadêmicos, e das entidades que os acompanham, observando formas de constituição de sujeito.

Circulação de imagens e a produção do espaço colonial holandês
Autoria: João Frederico Rickli
Autoria: Este artigo busca explorar alguns dos efeitos da profícua produção de imagens do Brasil Holandês (1630-1654) sobre a construção do mundo e do espaço colonial dos Países Baixos, considerando sobretudo a questão religiosa. Como se sabe, a presença holandesa no que hoje é o Nordeste brasileiro, sobretudo nos anos de governo de Maurício de Nassau, foi marcada por uma produção bastante significativa de imagens retratando, sobretudo, a fauna, a flora, os habitantes e paisagens da região, além do grande número de mapas ilustrados. Neste work, este conjunto de imagens é tomado como uma forma de materialização do mundo colonial e, como tal, investigado a partir de sua capacidade de agência sobre o conjunto de relações implicadas no empreendimento expansionista holandês. O objetivo aqui é, ao colocar esta coleção bastante notória em diálogo com os documentos sobre a vida religiosa da colônia, refletir sobre seus efeitos e interferências na visão de mundo calvinista do período.
Coexistência e co-agência do Marujo Martim Pescador em uma família de sangue e de santo no sertão baiano
Autoria: Flávio José dos Passos
Autoria: Na vida do Povo de Dola, a relação com as entidades espirituais não é um momento separado do cotidiano. Há uma relação de interpessoalidade entre os integrantes da família de sangue e santo e as entidades, sobretudo, a presença do Marujo Martin Pescador, articulando e dinamizando a vida social do grupo. A centralidade da presença de “Seu Martim” inserida na dinâmica familiar, afirma-se à medida que o grupo é mantido em equilíbrio físico, mental e espiritual pela comunicação viva entre as grandes mães e as entidades da casa. A força ancestral das matriarcas – Dona Zita, Tia Elza e Mãe Fátima – sustenta-se pelo seu trânsito nesses universos, e o seu diálogo direto com os orixás, os caboclos e o “povo do tempo”, tendo à frente desse agenciamento o “Pai da casa” – “Seu Martim”. As trajetórias dos integrantes do Povo de Dola e do barracão de Xangô de Mãe Fátima confundem-se com a trajetória da própria entidade espiritual. Neste contexto de co-existência, co-agência e co-vivência de humanos e entidades espirituais, algumas questões suleiam a investigação: como se dá o processo de incorporação de Seu Martin no mundo social do Povo de Dôla? Em que medida e como entidades espirituais podem vir a ser, estão e participam enquanto sujeitos em um universo delimitado? Como participam da vida social dos seus “cavalos”? Em que circunstâncias essas entidades são (e estão) incorporadas? Como esse fenômeno é interpretado pelas pessoas? A força vital do terreiro ancora-se na figura – memória ancestral e contra hegemônica – de uma entidade espiritual, um bêbado, negro, marinheiro, um espírito, no dizer de mãe de santo, um “filho das águas”. Abordar sobre a presença, a agência e a centralidade de uma entidade espiritual em um grupo doméstico pertencente a um candomblé de tradição local nos aproxima de uma relação entre humanos e não humanos – no caso um “invisível” – os quais, em conjunto, tecem uma rede de relações espirituais e sociais, que convergem para um reordenamento da própria vida. Uma dinâmica social na qual um “invisível” cuida dos socialmente invisibilizados. A presença do Marujo garantiria a toda a comunidade acessar uma costura social e espiritual, individual e coletiva, ritual e festiva da vida. De um simples organizar da roda antes de um xirê, a um consultar o “povo do tempo” sobre alguma realidade espiritual em desajuste, de ver se um filho da casa corre algum perigo ou está doente, até organizar o calendário de uma festa, ou perceber que um determinado ogã não desempenha bem um toque específico. São índices, agências e efeitos que dizem respeito a uma coexistência, redefinindo as múltiplas fronteiras do cotidiano, para além do ritual, integrando corpos, ritos, entidades e orixás, enquanto um aprendizado mútuo (ênfase reiterada pelo próprio Marujo).
Conexões e agenciamentos: uma abordagem antropológica dos afroparaguaios Kamba kuá
Autoria: João Alipio de Oliveira Cunha
Autoria: Os estudos antropológicos sobre as comunidades afroparaguaios ainda permanecem tímidos nas universidades brasileiras. Nos anos de 2013 e 2014 fiz um work de campo com os grupos Kamba Kuá, que se encontra entre os limites de São Lorenzo e Fernando de La Mora à 20 minutos da capital Assunção e Emboscada, que têm o nome da cidade rural que fica próximo a fronteira com o Mato Grosso do Sul, Brasil. O encontro com eles contribuíram para a elaboração do work de conclusão de curso “Santos negros, memória e oralidade: diálogos entre o jongo/caxambu e o candombe paraguaio (festas para são Benedito e são Baltazar)”, onde tive a oportunidade de observar a festa religiosa para o santo negro Baltazar, considerado patrono da comunidade Kamba Kuá. Nas visitas foram realizadas mais de seis entrevistas, anotações, fontes escritas e vídeos que serão analisadas com mais detalhes e se somarão a novos works de campo durante o doutorado. Segundo as narrativas dos membros de Kamba Kuá, o grupo veio do Uruguai no ano de 1820 trazidos pelo general uruguaio José Artigas, que se exilou no Paraguai durante o período do governador Dr. Gaspar Francia fugindo de perseguições políticas. A chegada dos negros uruguaios em solo paraguaio no século XIX é resultado de um segundo processo forçado de desterritorialização que culminou com um processo altamente elaborado de reterritorialização, que pode ser visto por meio de agenciamentos, combinações e conexões com os elementos ameríndios e cristãos. A etnografia sobre os afroparaguaios pretende contribuir com análises referentes às experiências e narrativas de jovens e lideranças comunitárias sobre temáticas relacionadas ao campo da religião e cultura tão presentes em seus cotidianos.
Dinheiro e sacrifício de si: uma etnografia da Fogueira Santa da IURD na cidade de Maputo
Autoria: Lívia Reis Santos
Autoria:

A relação entre pessoas e coisas é um tema central nos estudos antropológicos preocupados em compreender as dinâmicas daquilo que se convencionou chamar de religião. Sobretudo nas últimas décadas, multiplicaram-se as análises que enfatizam a agência de objetos, coisas, tecnologias, mídias, corpos etc. na produção e nas transformações de práticas percebidas como religiosas. É, portanto, a partir dessa perspectiva que apresento uma etnografia detalhada da “Fogueira Santa de Israel” ocorrida na Igreja Universal do Reino de Deus em Maputo, capital de Moçambique. Promovido anualmente em todas as unidades da IURD espalhadas mundo afora, o evento sempre esteve no centro de grandes controvérsias públicas porque incentiva que os crentes se desprendam de todos os seus bens materiais para doá-los a Deus num ato que será obrigatoriamente retribuído se feito com sinceridade. Tendo como base a etnografia realizada antes, durante e depois da Fogueira Santa em 2014, período em que realizei minha pesquisa de doutorado, este work objetiva compreender a forma por meio da qual a Fogueira é construída discursiva e materialmente, por obreiros, pastores e fiéis, dia após dia, ao longo de quarenta dias. Durante esse período, o fiel que se propõe a participar da Fogueira também enfrenta uma intensa batalha espiritual contra os espíritos que tentarão fazê-lo desistir de seu propósito. Ao final, pretendo demonstrar a construção desse sacrifício como um processo lento e gradual fundado em compromissos morais que estão na base da religiosidade iurdiana e na forma como os crentes vivem no mundo que existe para além dos muros da igreja. Nesse jogo imbricado, as diferentes materialidades constitutivas da Fogueira, tais como envelopes, coletes, pedras, azeites, imagens e a própria fogueira montada no altar da sede da IURD em Maputo, se mostraram fundamentais para que o sacrifício se realizasse efetivamente na medida em que despertavam sentimentos e conferiam sentido ao processo de transformação do dinheiro na vida da própria pessoa, isto é, num sacrifício de si.

Espíritos e chapas de raio-X: técnicas e procedimentos no tratamento espiritual de doenças
Autoria: Allan Wine Santos Barbosa
Autoria: Busco discutir neste work os métodos de cura e tratamento espiritual oferecidos por um pequeno centro espírita da cidade de São Carlos, interior de São Paulo. A partir de um caso etnográfico específico, contrasto as técnicas e discursos empregados pelos médiuns e espíritos que através deles se manifestam com o discurso médico convencional. Como as pessoas que buscam esse tipo de tratamento espiritual encaram as aproximações e diferenças entre tais modos de diagnosticar e tratar enfermidades? Em termos da experiência dessas pessoas, como a agência espiritual se manifesta materialmente em seus corpos? Essas questões implicam numa reflexão sobre como o discurso se relaciona (ou não) à dimensão sensória dos pacientes, buscando trazer à tona o modo pelo qual dores, alívios e outras sensações são apreendidas pelos frequentadores do centro, pelos médiuns/espíritos e pelos médicos. Discuto também como o tratamento espiritual não busca se opor à ciência médica secular, mas se constrói enquanto um desenvolvimento e alternativa frente a, assim apreendida, limitação do conhecimento humano. Essa postura, comum no contexto etnográfico do kardecismo, produz experiências bastante interessantes no trato de mazelas e sofrimentos de ordem fisiológica e psicológica. No centro estudado, uma junta permanente de médicos espirituais faz requerimentos de exames, pedem tempo para discutir os resultados, realizam operações, receitam tratamentos e cuidados, emitem pareceres favoráveis ou desfavoráveis aos diagnósticos de médicos encarnados, além de realizar acompanhamentos e consultas rotineiras. Esse nível em imbricação entre um contexto espiritualista e o conjunto de técnicas e procedimentos “materiais” advindos da ciência médica produz uma situação em que o processo de cura é encarado pelos pacientes de forma totalmente diferente da noção de “milagre”, presente em contextos católicos, pentecostais e neopentecostais. O procedimento da cura espiritual implica num trânsito constante entre espiritualidade e materialidade, ao ponto dos pacientes e médiuns insistirem enfaticamente na noção de “tratamento médico”, algo diferente da manifestação transcendental do divino na pessoa que caracteriza o milagre. Este work visa, portanto, fornecer uma contribuição etnográfica aos debates sobre a interface entre saúde e espiritualidade através de um enfoque nas formas pelas quais esse universo de significados e práticas se materializa na experiência de busca pela cura dos frequentadores do centro espírita.
Investimentos espirituais e materiais nos festejos de terecô em Codó (Maranhão)
Autoria: Conceição de Maria Teixeira Lima
Autoria: O terecô é uma religião afro-brasileira muito praticada e difundida no estado do Maranhão, na qual se manifestam entidades espirituais comumente chamadas de encantados. O município de Codó, no Maranhão, é referência dessa religião. Devido à grande quantidade de tendas presentes na cidade, existem, durante o ano, inúmeros festejos em homenagem a santos e encantados, que são avidamente aguardados por muitos terecozeiros. Apesar do festejo acontecer em data prevista em calendário ritual, sua produção é realizada a partir de diversas atividades cotidianas de uma tenda, conjugando investimentos materiais e espirituais. A festa envolve uma demanda de tocadores de tambor e cabaças, rezadores, cantadores, seguranças, pessoas que trabalham com estruturas de som e filmagens, alimentação e hospedagem. Além disso, ajudam a pensar a agência das entidades, as “forças” presentes em uma casa, as relações entre pessoas e seus guias espirituais. Neste work pretendo discutir as conexões entre investimentos materiais e espirituais na produção do festejo, enfatizando questões como força, proteção, cuidado, beleza, animação e abundância, condições fundamentais para que uma festa seja considerada “boa” e “bonita”.
Joana e o Escapulário : notas sobre vulnerabilidades na relação entre vigilantes, casarões e seres intangíveis
Autoria: Gabriela Lages Gonçalves
Autoria: Este artigo parte do work de campo da minha dissertação de mestrado (em andamento) sobre experiências entre pessoas e seres intangíveis que habitam casarões do Centro Histórico de São Luís, capital do Maranhão. Visagens, assombrações, espíritos, entidades e fantasmas são expressos nesse conjunto arquitetônico, identificados por manifestações sonoras, visuais, pelo cheiro e pelo tato. O Centro Histórico é ocupado por diversos serviços, e uma categoria profissional presente constantemente nos casarões são os vigilantes. Durante a pesquisa, convivi com vigilantes de três prédios públicos, buscando analisar suas perspectivas acerca das manifestações dos seres intangíveis e suas leituras sobre as casas animadas, habitadas por agências diversas. Neste work proponho uma análise das perspectivas de proteção e desproteção dos vigilantes nos casarões – que remetem a sentimentos de vulnerabilidade. Entre vultos, cruzes, alhos e armas de fogo, reúno aqui noções de perigo e segurança a partir da adaptação dos vigilantes aos prédios nos quais trabalham. Parto da trajetória de Joana, expressa na sua relação com um escapulário - símbolo católico que a ajudou a ‘se acostumar’ com os seres presentes no casarão. Minha intenção é mostrar que aparentes riscos (como a insegurança das ruas à noite) são repensados e têm seu sentido transformado na interlocução entre pessoas, casarões e seres intangíveis no cotidiano de work.
Memória, adaptação e organização de espaços entre imigrantes surinameses na Holanda Thiago Niemeyer Loureiro (LAH & Pós-doc UFRRJ)
Autoria: Thiago de Niemeyer Matheus Loureiro
Autoria:

O texto propõe um escrutínio etnográfico das práticas de “descarte” mobilizadas tanto em processos de "adaptação" de imigrantes surinameses à Holanda quanto na escolha de objetos a serem levados como “recordações”, adquiridos ou deixados para trás. A ideia de que a empreitada migratória enseja relações específicas de despojo, retenção e aquisição de hábitos específicos embasa também a lógica de organização de objetos guardados ou comprados com a finalidade de evocar “lembranças”. Critérios como peso, odor, tamanho, apego emocional, transportabilidade, possibilidade de substituição, preço e sujeição à decomposição são fundamentais na escolha do que é mantido, descartado ou comprado com a finalidade de evocar memórias entendidas como “agradáveis”.

Narrativas antropológicas sobre materialidade e espiritualidade na Amazônia marajoara
Autoria: Eliane Miranda Costa
Autoria: O texto tem por finalidade fazer uma discussão sobre materialidade e espiritualidade na Amazônia marajoara. Neste exercício tem-se por base um artefato chamado de Cruz Milagrosa, que se encontra localizado às margens direita do rio braço do socó, afluente do rio Mapuá, município de Breves, arquipélago de Marajó, Estado do Pará. É um objeto que integra o conjunto de materialidade dos moradores desse lugar e desempenha papel significativo na construção cultural e identitária desses agentes. Trata-se de um artefato que faz milagres de toda ordem. Homens e mulheres da localidade, bem como de outros lugares procuram pela cruz para cuidar do corpo e da alma e em troca da benção atendida, costuma-se oferecer oferendas em forma de fitas, velas, fogos, roupas e orações. O objetivo desse empreendimento é refletir com base neste artefato e sua dinâmica cosmológica sobre a reinvenção de práticas materiais, religiosas e sociais, e nesse movimento verificar o poder das tradições e crenças recriadas pelos coletivos do Mapuá. Na trilha da História Oral, as narrativas coletadas por meio de entrevistas semiestruturadas, me colocaram em conexão direta com as memórias resultantes de lembranças influenciadas e configuradas pelas condições materiais e simbólicas no momento das entrevistas, incluindo a relação entre a pesquisadora e os interlocutores. As reflexões em diálogo com teóricos do campo da história, da antropologia e da arqueologia, sobretudo, da vertente pós-processual, permitiram inferir ser a Cruz Milagrosa, instrumento que não está circunscrito ao plano religioso. Mas envolve escolhas e atitudes quanto ao cuidado com o corpo e a alma, desencadeado em um processo em que natural e sobrenatural apresentam-se entrelaçados. Em uma relação dialógica e dialética demonstra-se que a Cruz Milagrosa é um poderoso artefato que exercer naquele contexto o papel de agência material e espiritual e isso reflete nas práticas e saberes ressignificados a cada geração. Nas curvas e margens dos rios, materialidade e espiritualidade ganham sintonias e sentidos diversos, assim como diferentes tradições são reinventadas na dinâmica das cosmogonias e cosmologias locais. Destaco nesse movimento, a capacidade e criatividade humana evidenciada no ato de permanecer, abandonar, como também de recriar tradições, práticas e o próprio território, atribuindo-lhes diferente usos, apropriações e significados. Uma lógica que corrobora para questionar leituras lineares sobre o tempo, a história, o lugar, e assim, romper com a estrutura de colonialidade, que por longas décadas tem prevalecido e instituído a chamada violência epistêmica.
O caminho é o propósito: relações entre a vida cotidiana e a magia de Abralas
Autoria: Alexandre Iung Dias
Autoria: Em 2016, foi criado, pela atuação de alguns praticantes de magia, o que se denominou Abralas: uma “deidade contemporânea” ou, ainda, o “Deus dos Caminhos”. Sua criação remonta à Magia do Caos: um sistema de magia moderno que, herdando certos conceitos e práticas do ocultismo europeu, pretende manipular a realidade conforme a vontade do praticante. Isto inclui a criação de entidades denominadas “servidores” que teriam a capacidade de atuação na realidade. No caso em questão, isto consistiu na criação do servidor Abralas. Sua função está associada com a ideia de uma Chave Mestra: ele serviria, a princípio, para facilitar burocracias da vida cotidiana de forma genérica, seja facilitando o envio de documentos, seja desimpedindo o trânsito intenso que levaria alguém a se atrasar para um compromisso. No entanto, segundo aqueles que utilizam deste servidor, ele passou a atuar inesperadamente em casos mais abstratos de desobstrução de fluxos, isto é, facilitando oportunidades que estariam de acordo com a vontade da pessoa que o chamasse. Uma relativa popularização na internet o acompanhou e o levou para além dos praticantes de magia: mais de 4000 pessoas acompanham sua página no Facebook e pouco mais de 3500 pessoas participam do grupo de estudos dedicado a Abralas, nesta mesma plataforma. Lá, compartilham-se agradecimentos, convocações para ritos coletivos e ideias de rituais que teriam maior eficácia em fazê-lo atuar na esfera cotidiana. Este work visa realizar uma investigação no grupo virtual e na página sobre o servidor, analisando o discurso dos envolvidos. Isto envolve tanto os relatos da experiência quanto a atribuição da agência a Abralas e, ainda, a elaboração mais teórica sobre o que Abralas é e como se inter-relaciona com outras agências humanas e espirituais. Em especial, considerando o diálogo com um de seus criadores, visa-se entender de que forma se faz um primeiro contato com o servidor e de que forma se percebem os resultados de sua atuação nas experiências da vida cotidiana. Nos termos de Almeida (2013), há aqui uma relação onde o que se considera ser possível de existir, isto é, um pressuposto ontológico, é verificável a partir de encontros pragmáticos que reafirmam a existência do ente em questão. A relação entre a experiência cotidiana e a elaboração posterior a respeito destes encontros pragmáticos será utilizada como chave para a compreensão do lugar de Abralas na vida destas pessoas e como se percebe sua atuação.
Os sentidos de destruição e o que dizem os espíritos: notas para pensar o conceito de genocídio
Autoria: Luísa Pontes Molina
Autoria:

Durante a construção da Usina Hidrelétrica de Teles Pires, no estado de Mato Grosso, foi dinamitada a cachoeira Karobixexe, um lugar considerado sagrado para o povo Munduruku, por ser o destino das almas dos mortos e a morada da mãe dos peixes. Com isso, os espíritos ficaram sem rumo, e os indígenas, por seu lado, têm sofrido não só com os efeitos da destruição do lugar, mas com os riscos do que ainda acontecer. Foram retiradas, antes da explosão, 12 urnas que segundo Munduruku são elas mesmas espíritos ancestrais, como também meio de comunicação entre espíritos e pajés. Levadas à cidade de Alta Floresta pela empresa responsável pela usina, as urnas estão no centro de um conflito delicado entre diferentes órgãos do governo federal, empresas privadas, indígenas e espíritos que, infelizes por estarem na cidade, e em decorrência de todos esses eventos, têm exigido que se realizem determinados rituais e que tanto os Munduruku como os não-índios peçam desculpas. A presente comunicação apresenta esse caso a partir dos documentos tornados públicos pelos Munduruku, para então pensar no que os "impactos" sobre os espíritos e sobre lugares considerados sagrados dizem sobre a destruição promovida na construção de barragens. Com isso, pretende-se chamar a atenção para possíveis formas de tratar das experiências de destruição vivenciadas pelos coletivos indígenas, considerando que os espíritos participam da constituição mesma das socialidades indígenas, e que a relação com a terra é condição de autodeterminação ontológica e política desses povos. O objetivo último desta comunicação é testar formas de abrir o conceito de genocídio, para que ele abrigue experiências como essas, uma vez que a noção de etnocídio, como argumentamos alhures, não é suficiente para dialogar com o sentido que os indígenas parecem expressar ao frisarem a conexão íntima entre terra e vida. Para isso, mobilizaremos ainda etnografias de ataques de espíritos que resultam em mortes por enforcamento, uma vez que os ditos suicídios guardam conexões com o tema do genocídio indígena em diferentes registros.

Para onde corre a corrente dos caboclos? O caso da (pouca) correnteza do rio São Francisco na Ilha do Massangano.
Autoria: Marcia Maria Nóbrega de Oliveira
Autoria: Com o advento da Barragem de Sobradinho, construída na década de 1970 a cerca de 40km a montante da Ilha do Massangano, que está situada no sertão do São Francisco entre as cidades de Petrolina –PE e Juazeiro – BA, não apenas regulou-se o sistema de vazantes (sentido vertical alto/baixo), alterando definitivamente o sistema de plantio e as condições de navegabilidade naquele trecho de rio, mas também freou a forças de suas águas (sentido horizontal cima/baixo), a tal ponto de hoje o rio estar, no dizer, “parado”, “raso” e sem correnteza, isto é, “morto”. Nesse sentido, me interessa pensar em que medida a Ilha do Massangano, mesmo estando a jusante da Barragem de Sobradinho, foi também afetada por ela, para isso considerarei não apenas os afetos dos vivos, mas também de outros entes que convivem naquela terra: as almas e os caboclos. Para essa apresentação, mais especificamente, procuro pensar como se dá a correlação de forças entre a correnteza do rio e a “corrente de caboclos”, já que é sabido na Ilha que a última é alimentada pela primeira. Sem correnteza, há correntes? Onde estão estes caboclos desterrados?
Revisitando o vodu: interações e movimentos entre humanos e espíritos em dois contextos haitianos
Autoria: Flávia Freire Dalmaso, Rodrigo Charafeddine Bulamah (Unicamp e EHESS)
Autoria: Diferentes análises sobre o vodu haitiano apontam para o fato do termo vodou ser empregado para definir momentos específicos em que rituais envolvendo cantos, danças, tambores, comensalidade e movimentos são conjugados na interação entre humanos e espíritos. Contudo, poucos(as) autores(as) exploraram a fundo esta associação dedicando-se a enfatizar uma imagem estável do vodu como um conjunto de práticas e conhecimentos associado às obrigações para com os espíritos, à cura e à magia. Politicamente, a criação dessa imagem possibilitou ao vodu adquirir o estatuto de religião popular nacional ganhando legitimidade e eficácia em disputas identitárias e territoriais das quais antropólogos(as) participaram e participam ativamente. Embora reconheçamos a importância de tais estudos, nosso propósito, neste exercício a quatro mãos, é avançar em outra direção e considerar o vodu menos a partir de suas estabilizações do que da perspectiva dos movimentos que produz, partindo da categoria nativa e de suas possíveis traduções. Fazendo isso, pretendemos nos distanciar de armadilhas comuns como a busca – muitas vezes implícita – por elementos formais rígidos, por rituais imutáveis (no tempo e no espaço) e por um panteão espiritual consolidado. Essa alternativa viabiliza observar, em outra chave, as dinâmicas, as interações e as transformações postas em rituais, principalmente a partir de danças, da vibração dos tambores e do aquecimento dos corpos. Ao mesmo tempo, ela também permite explorar trajetórias de vida e percursos que podem, e costumam ser, alterados como consequência direta da interação cotidiana entre pessoas e entidades espirituais, abrindo a possibilidade de crítica às categorias mobilizadas por antropólogos e antropólogas, como a própria noção de religião. Nossa apresentação buscará aproximar dois contextos etnográficos de pesquisa realizadas em locais relativamente distantes, um situado no Norte e outro no Sul do Haiti. Nosso principal objetivo é elaborar uma análise das lógicas e das interações com os espíritos em uma perspectiva processual que inclua também o papel de outras agências, de materialidades diversas e de novos contextos situacionais, como as conversões religiosas e o avanço de missionários pentecostais pelo país. A aproximação de nossas experiências de pesquisa servirá, por um lado, para testarmos as possibilidades e os limites de um esforço comparativo que leve em conta diferentes contextos regionais e, por outro, para repensarmos a validade de uma proposta que possa analisar o vodu não só dentro das fronteiras nacionais, mas levando em conta suas interações com fluxos e trânsitos globais.
Sobre fronteiras materiais e espirituais: exibindo a coexistência entre Deus e de outros parentes afro-caribenhos em Old Bank, Panamá
Autoria: Claudia Fioretti Bongianino
Autoria: Com base em 15 meses de etnografia, analiso as disputas em torno de narrativas e experiências relacionadas ao parentesco, à bruxaria e a duas distintas doutrinas cristãs, adventistas e metodistas. O foco da análise reside na criação de uma exibição museológica sobre as tradições fúnebres de Old Bank (localmente chamadas de nain nait), a qual foi criada por meus interlocutores e por mim em 2016. Por meio dessa análise, mostro como agências não/humanas e i/materiais (livros cristãos, álcool, Deus e espíritos) eram constantemente mobilizadas em controvérsias vinculadas a ritos extraordinários e a atos de cuidado ordinários relacionados à vila familiar e à práticas sagradas. Assim, argumento que, em Old Bank, é impossível traçar uma fronteira entre parentesco e religião uma vez que as práticas e idéias locais de relatedness focam, não em pertencimentos exclusivos relativos ao sangue e ao sobrenome (no caso da família) ou à filiação a uma doutrina cristã específica (no caso da religião), mas sim ao liv laik fámili: isto é, viver como família junto com agências não/humanas e i/materiais herdadas dos próprios antepassados afro-caribenhos e dos próprios parentes Bíblicos (Adão e Eva, Espírito Santo e Diabo), os quais literalmente habitam os corpos das pessoas.
Velas e Velones: sobre estética, materialidade e temporalidades entre Catolicismo e Vodu na República Dominicana
Autoria: Victor Miguel Castillo de Macedo
Autoria: Este work é uma exploração a respeito das múltiplas agências que objetos e seres não-humanos contém em festas de religiosidade popular na República Dominicana. Tomam-se como referencial embates que se passaram durante um work de campo na e a partir da Festa de San Miguel, em torno das velas e dos velones (velas grandes) que se diferenciam por cor e tamanho. A controvérsia que serve de ponto de partida para essa breve reflexão é o enunciado que opõe catolicismo e vodu – dela decorre o argumento de que objetos, formas e cores circulam, mobilizam e articulam, sentidos e valores que tornam mais complexa dita oposição. Para qualificar a intensidade e evidenciar de que maneira diferentes historicidades se expressam nessa contenda, procuro apresentar a duração temporal desta fricção na sua modulação de outras épocas e registros. O objetivo é demonstrar de que maneira elementos sensíveis e estéticos alimentam uma contiguidade entre os polos dessa antinomia, que terminam por fortalecer San Miguel como santo e mistério, na compreensão dominicana. Cabe dizer também, que ao longo da pesquisa sobre tal controvérsia, notei que tudo se passa como se ela fosse um microcosmo da produção de uma alteridade dominicana – com o vizinho Haiti, território de surgimento das cosmologias que compõem o que se conhece por Vodu. Desta forma, vê-se elementos materiais que fazem o religioso transbordarem seu significado para outras dimensões e serem também eles próprios atravessados por distintas coexistências e temporalidades.
Visão, discernimento e presença divina entre católicos na cidade de São Paulo/SP
Autoria: Ypuan Garcia Costa
Autoria:

A partir de pesquisa etnográfica realizada com um coletivo de católicos que se reúne em um grupo de oração na cidade de São Paulo/SP, esta apresentação visa a debater um dos dons do Espírito Santo, a “palavra” ou “dom” de ciência, chamada geralmente de “visão” e definida da seguinte forma: “Deus te dá em oração ou, de repente, ciência de alguma coisa que você não teria como saber se não fosse uma palavra direta d’Ele”. A “palavra” é proferida sem que o único princípio seja a verbalização, pois se revela por meio da “visão” (“ver diante de você”), da “visualização” (“ver fotograficamente”, “ver com pouca nitidez” e “ouvir mentalmente”) e também se “vê” por meio de calafrios, acelerações no batimento cardíaco, dores de cabeça, bocejos etc.. Considerando a análise do conteúdo imagético das visões, procuro descrever como elas, ao reunirem formas materiais diversas, são cruciais para o “discernimento”: um modo de conhecimento divinamente orientado fundamental nas relações cotidianas dessas pessoas com o que quer seja. Em síntese, tento problematizar uma forma de existência em que os materiais das visões e a maneira de discerni-los estão de ponta a ponta circunscritas ao vínculo com Deus que, segundo esses católicos, “está em tudo”.

“Presente na caminhada”. Notas sobre a transformação de lideranças assassinadas em mártires e encantados
Autoria: Edimilson Rodrigues de Souza
Autoria: A proposta desta comunicação é problematizar a transformação ritual de lideranças indígenas e camponesas assassinadas em zonas de intenso conflito fundiário em mártires da terra e encantados, a partir de dois casos etnográficos: Xicão Xukuru, no agreste do Pernambuco, e Dorothy Stang, no oeste do Pará. Meu objetivo é demonstrar como a celebração do martírio e encantamento destas duas lideranças mortas, através da realização de romarias e assembleias anuais que rememoram suas trajetórias e atuação junto a grupos de camponeses e indígenas, é motivo para reunir ativistas políticos e membros de movimentos sociais. Ao refazer o caminho dos mártires e encantados nos locais dos assassinatos e sepultamento, estes grupos modificam sistemas simbólicos, quando reafirmam, por exemplo, que os líderes mortos “continuam vivos e presentes na caminhada”, foram “plantados como sementes” ou que "seu sangue fortalece a luta pela terra”. O ato narrativo e a caminhada sugerem a modificação do estatuto da vida e da morte (traduzida em violência) ao recolocar o líder martirizado e encantado no centro dos enfrentamentos cotidianos por direitos humanos descritos como fundamentais: terra, água, floresta e vida. A partir de narrativas orais (cantos, falas) e visuais (fotografias, objetos pessoais, painéis, camisetas, entre outros) estes grupos trazem à tona a dimensão criativa e reivindicativa destas romarias e assembleias, que homenageiam suas lideranças assassinadas, e transformam mártires e encantados em operadores das relações entre pessoas e mundos.
“TUDO AQUI TEM AXÉ”: A presença do desativado Terreiro da Goméia em Duque de Caxias
Autoria: Adriana Batalha dos Santos
Autoria: A precoce e repentina morte do famoso Pai de santo Joãozinho da Goméia em 1971 e os conflitos envolvendo a sucessão de sua liderança no Terreiro da Goméia em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, transformaram em poucos anos o Terreiro em um terreno baldio com poucos vestígios do exuberante Candomblé ali instalado no final da década de 1940. Minha pesquisa de doutorado, em curso, vem procurando seguir tramas em torno de múltiplos agentes e agenciamentos direcionadas ao terreno desse desativado Terreiro. O atual estágio dos dados etnográficos e o esboço interpretativo que venho fazendo apontam para diversas vidas “vividas” e “projetadas” nesse espaço. Tanto das prósperas edificações e rica flora que a Goméia dos tempos de Pai João ostentava às ruínas e vazios que hoje predominam nesse espaço que já foi terreiro badalado, terreiro decadente, terreiro abandonado, terreno baldio, praça, campo de futebol, boca de fumo e mais recentemente sítio arqueológico de repercussão midiática. Quanto das “vidas projetadas”, como a reativação do terreiro, a construção de uma creche e criação de um centro cultural, que ainda não foram efetivadas. E como essas “vidas” são ao mesmo tempo agentes e agenciadas em relação a Goméia legada por Pai João. Para esse GT proponho explorar um aspecto que perpassa essas “vidas”: a apontada agência do Terreiro da Goméia nos rumos desse espaço, após a morte física de seu criador. Essa agência aparece na fala de Rodrigo, um jovem vizinho entrevistado para essa pesquisa. Ele conta que quando criança, assim como parte da vizinhança, tinha medo de entrar lá. Mais velho e já envolvido com as histórias do terreno, fez parte do grupo de vizinhos que tentou transformá-lo em um campo de futebol. Chegaram a conseguir a sua limpeza e as traves, mas pouco tempo depois pararam de frequentar o campo. Lembra ainda que também tentaram sem sucesso organizar ali uma festa de São João. Rodrigo explica esses “fracassos” como consequência do que chama de “maldição da Goméia”, que faria com que nada fosse “pra frente ali”, lembrando também dos projetos de creche, memorial, centro cultural da Prefeitura que até hoje não se efetivaram. Também o pesquisador Rodrigo Pereira aponta em recente artigo alguns questionamentos ao sucesso de tentativas de “dessacralizar” o terreno, como a fala de uma antiga integrante do Terreiro revela: “Isso aqui [o terreiro] ainda tem axé, meu filho. Tem gente que vê o Caboclo [Pedra Preta] aqui de noite. (...) Mesmo que ele [o Caboclo] não more mais aqui, aqui ainda é o Terreiro da Gomeia. (...) Tudo aqui tem axé e não é o que houve que muda isso” (PEREIRA, Rodrigo. “Memórias do Terreiro da Gomeia: entre a materialidade e a oralidade”, in Religião e Sociedade. Rio de Janeiro, 2018).