Cinque Terre
GT 002. A contribuição da perspectiva antropológica sobre o uso de substâncias psicoativas para o debate atual em torno das
Frederico Policarpo de Mendonça Filho (UFF) - Coordenador/a, Beatriz Caiuby Labate (California Institute of Integral Studies in EUA - Programa de Psicologia Leste-Oeste do CIIS) - Coordenador/a, Andrés Leonardo Góngora Sierra (UNIVERSIDAD NACIONAL DE COLOMBIA) - Debatedor/a, Camila de Pieri Benedito (Doutoranda) - Debatedor/a, Rogerio Lopes Azize (UERJ) - Debatedor
O GT visa refletir sobre as representações e práticas acerca do uso de substâncias psicoativas e discutir instrumentos teóricos e metodológicos que permitam compreender os formas de consumo, seus efeitos sociais e políticos, bem como os controles que as cercam. Contempla a multiplicidade de discursos e práticas que coexistem em torno dessas substâncias, como a própria definição como “drogas”. Tanto as estratégias de controle sobre as experiências de uso, como aquelas mobilizadas para garantir esse consumo são consideradas em suas singularidades, isto é, a partir de sua própria constituição. Nesse sentido, o ponto de partida é problematizar o paradigma “médico-legal” em que se baseiam as políticas de drogas estatais. Ao mesmo tempo, busca-se superar a dicotomia “efeitos farmacológicos” versus “aspectos culturais”, promovendo o diálogo entre diferentes campos de conhecimentos, de modo a se pensar o tema a partir de uma perspectiva mais integrada. Para tanto, o GT comporta: 1) etnografias sobre práticas de consumo de substâncias que recebem as alcunhas de “droga”, “plantas” e “remédios”; 2) análise de políticas de drogas e das instituições que atualizam regimes de controle, tais como tribunais de justiça e serviços de saúde e comunidades terapêuticas. 3) pesquisas que exploram o saber nativo e o encontro entre disciplinas diversas, como, por exemplo, investigações sobre o potencial terapêutico da maconha e dos alucinógenos.
Resumos submetidos
"Olhe bem para sua casa": Santo Daime, gênero e sexualidade
Autoria: Camila de Pieri Benedito
Autoria: Proponho nesta comunicação apresentar reflexões de minha pesquisa de doutoramento intitulada “Gênero e religião no Santo Daime”, baseada na imersão etnográfica em uma comunidade daimista do sul de Minas Gerais. Fundado em 1930, o Santo Daime é a mais antiga das religiões ayahuasqueiras e desde o final do século XX, tem crescido em popularidade e em número de adeptos com a fundação de comunidades religiosas por todo o mundo. Estes adeptos da expansão são indivíduos majoritariamente brancos, oriundos da classe média escolarizada de centros urbanos e os novos núcleos caracterizam-se por uma crescente heterogeneidade ritual e pela absorção da religiosidade nova era, características recorrentes entre os chamados novos movimentos religiosos. Na comunidade estudada, o movimento de sacralização da natureza é o aspecto da religiosidade nova era que mais se destaca, estando relacionado com a concepção nativa do Santo Daime como o fundador de uma era mariana. Neste movimento, Maria e a natureza integram em si os discursos sobre a essência do feminino. As plantas utilizadas para o feitio da bebida ritual do culto - o daime - também são genderificadas, sendo a folha chacrona relacionada ao feminino e o cipó jagube ao masculino. Neste contexto, o feminismo histórico, aquele especialmente voltado aos direitos reprodutivos e à busca por igualdade de direitos, é majoritariamente rejeitado pelo grupo, sendo interpretado como agressivo. Através da leitura dos dados de campo pela perspectiva teórico metodológica da intersecção religião, gênero e sexualidade, é possível observar como o movimento se entrelaça com o sagrado feminino e com a teologia feminista católica, compartilhando características cosmológicas, demográficas e históricas. Observa-se como as experiências de gênero e de sexualidade acabam limitadas, com a supervalorização da maternidade, da paternidade e da família nuclear heterossexual, especialmente destacadas pelas ideias nativas de ‘cura do feminino’ e de ‘cura do masculino’. Esta apresentação ainda inclui como a experiência extática individual, que tem como protagonista um sacramento enteógeno, abre espaços de resistência por parte daqueles que não aderem a estes discursos normativos, possibilitando a construção de narrativas particulares sobre gênero e sexualidade – como já tratado por Cavnar (2014) -, à parte do discurso hegemônico, prolongando a permanência destas pessoas no culto. Por fim, e para destacar a importância do contexto histórico da gênese das comunidades na elaboração destes discursos, pontuo experiências genderificadas em comunidades na América do Norte, colhidas a partir de entrevistas e breves imersões de campo.
(Anti-) Incitacionismo? Uma reflexão sobre moralidades distintas entre “drogas” e “medicamentos”
Autoria: Rogerio Lopes Azize
Autoria: Levando a sério a proposta deste GT, digamos que uma das boas contribuições de uma perspectiva antropológica para o debate atual em torno das “drogas” seja justamente as aspas com as quais esta palavra se apresenta. Ao colocar em perspectiva etnográfica e/ou histórica uma série de substâncias, verifica-se uma imensa fluidez em sua classificação, apenas a mais óbvia entre legal e ilegal. Com isso, aponta-se para o caráter pouco coerente de uma lógica proibicionista, como exemplifica o momento atual pelo qual passa a maconha, em vias de, em seu todo ou suas partes, tornar-se (ou voltar a ser) “medicamento”. Mas este termo também merece aspas e aqui a provocação deste paper: um anti-proibicionismo no que diz respeito a algumas substâncias ilegais não encontra equivalência moral no campo do debate sobre substâncias legais. Pelo contrário, a literatura é farta em um esforço crítico das formas de produção, divulgação e mesmo dos usos feitos de medicamentos, em um tom de denúncia. Moralidades distintas marcam, então, o cruzamento entre reflexões antropológicas sobre “drogas” e “medicamentos”. Somos anti-proibicionistas no que se refere aos circuitos marcados por legalidades? No que diz respeito aos laboratórios farmacêuticos, aos medicamentos e seus usuários, levamos em conta argumentos que têm sido importantes na reflexão e relativização das substâncias, como a autonomia dos usuários, controles informais ou contexto de uso (Rui e Labate, 2016)? Partindo da hipótese de um “dispositivo da droga” (Vargas, 2008), ou seja, de que paralelamente a um agressivo proibicionismo, algumas sociedades ocidentais contemporâneas tendem a uma igualmente marcante incitação ao uso de certas substâncias, o objetivo deste paper é uma reflexão sobre o rendimento de se pensar um incitacionismo ou mesmo um anti-incitacionismo, a depender de que lado a substância é classificada.
A importação do Canabidiol no Brasil: uma análise quali e quanti dos pedidos realizados à ANVISA
Autoria: Yuri José de Paula Motta, Perla Alves
Autoria: A ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) tem como uma de suas finalidades institucionais promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle da produção e consumo de produtos e serviços. Nos anos de 2015 e 2016, a ANVISA retirou o Canabidiol e outros canabinóides em forma de extração vegetal da lista de substâncias proscritas, o realocando para uma lista de medicamentos extremamente controlada, exigindo apenas que o produto tenha registro em seu país de origem. Ou seja, a obtenção desse medicamento apenas é permitida na forma de importação, sendo que no Brasil a planta Cannabis Sativa L., -popularmente conhecida como maconha – que é a base para a produção da substância, continua proibida. Este work objetiva analisar qualitativamente e quantitativamente os pedidos realizados à ANVISA para importação do Canabidiol no Brasil. Pretendemos deslocar nosso olhar para dois modos de produção de conhecimento acerca do tema: um sobre a experiência e outro a partir da experiência. (POLICARPO, 2016) O primeiro corresponde a um conhecimento normativo, abrangendo dados quantitativos sobre os pedidos realizados em todo país, e o segundo a conhecimentos particulares, produzidos a partir da experiência dos próprios “pacientes”, este tendo um recorte limitado a cidade do Rio de Janeiro. Os pesquisadores e autores deste paper são integrantes do projeto “As políticas em torno da maconha: produzindo conhecimento sobre o seu uso medicinal e as articulações com a lei e a medicina” (CNPq), coordenado pelo Prof. Dr. Frederico Policarpo (InEAC/UFF), pretendemos então, apresentar uma parte de seus resultados.
As contribuições da perspectiva antropológica no estudo das audiências de custódia por crimes de tráfico de drogas em Natal/RN
Autoria: Lênora Santos Peixoto
Autoria: Dentro de um contexto carcerário factualmente sobrecarregado e reprodutor da violência sistêmica e simbólica, somado a uma conjuntura de penalização seletiva, pautada na reprodução de padrões hegemônicos, especialmente no que concerne aos crimes ligados ao tráfico e ao uso de entorpecentes, que carregam subjetivismos nos discursos ocultos e explícitos por trás da opção política pela sua criminalização, faz-se necessário questionar a(s) forma(s) como se revelam as instituições de controle e seus atores, investigando a potencialidade e a realidade factual dos institutos jurídicos teoricamente materializantes de direitos, como as audiências de custódia. Assim, o presente artigo parte de um desdobramento da pesquisa realizada em 18 meses de vivência no programa de especialização em Residência Judicial da UFRN, com campo na Central de Flagrantes do Município de Natal-RN e foco em crimes autuados como “Tráfico de Drogas” (art. 33 da lei nº 11.343/2006). Pretende-se, nessa nova abordagem, demonstrar como a análise interdisciplinar com a antropologia, advinda da pesquisa desenvolvida no âmbito do Mestrado do PPGAS da UFRN, contribui com uma ressignificação dos dados outrora colhidos, superando a análise meramente quantitativa e/ou focada em abstrações normativas sob o escudo do “dever ser”. Assim, partindo da perspectiva interacionista, o viés antropológico propiciará transpor a análise do autuado enquanto “indivíduo desviante” em sua singularidade, para o estudo da construção das suas relações com os demais atores que compõe a audiência de apresentação e com a própria instituição de controle em que estão inseridos. Outrossim, os estudos da antropologia urbana e das suas possibilidades etnográficas irão corroborar no perquirir, em caráter substantivo, as formas de socialização existentes nas audiências de custódia por crimes de tráfico de drogas, tão quanto, os processos construtivos (in)explícitos que circundam os locais de fala dos seus atores, principalmente, no teor da fundamentação da decisão judicial que tem “em mãos” a liberdade ou o cárcere de um ser, refletindo como nesse ato pode se operar a deteriorização da identidade conforme a natureza do crime imputado. Assim, será possível problematizar em que medida as Audiências de Custódia podem se revelar como reprodutoras de uma política de drogas pautada no controle dos corpos, sustentada sob um ideário punitivista, inspirado no modelo norte-americano de guerra às drogas e refletido no pernicioso fundamento da “garantia da ordem pública”; ou como o instituto pode, potencialmente, ser aproveitado como instrumento efetivo no combate às prisões arbitrárias e/ou desnecessárias, em tempos de deturpação e mitigação de direitos humanos.
Church of the Holy Light of the Queen v. Mukasey: A regulamentação do Santo Daime no estado do Oregon
Autoria: Henrique Fernandes Antunes
Autoria: O work em questão tem por objetivo analisar a disputa legal entre a Church of the Holy Light of the Queen (CHLQ) - uma igreja de Santo Daime localizada no estado do Oregon - e o governo dos Estados Unidos, a qual resultou no processo de regulamentação do uso religioso da ayahuasca por parte da instituição naquele estado. Inicialmente, será descrito brevemente a inserção do Santo Daime nos Estados Unidos e o início das tensões com as instituições do país. Após essa apresentação inicial, será abordada a queixa que a CHLQ apresentou contra o governo federal e algumas de suas instituições, analisando o modo como esta foi formulada e destacando seus principais argumentos. Em seguida, a análise será direcionada para a disputa legal entre a CHLQ e o governo estadunidense, abordando as posições defendidas por ambos os lados, a decisão judicial, assim como as formas como a regulamentação da ayahuasca se efetivou após a decisão da corte distrital. Para além de apresentar o desfecho do caso e suas consequências, o intuito do presente work é analisar os modos como diferentes leis e regulamentos são operados e como as partes envolvidas disputam classificações em torno do uso religioso da ayahuasca.
Entre a prescrição e a proscrição: deslizamento de sentidos e práticas de uso da maconha no contexto do uso “terapêutico”
Autoria: Andrew Müller Reed
Autoria: O objetivo desta comunicação é apresentar questões de pesquisa etnográfica em andamento com mães e pais de crianças com doenças raras que fazem uso terapêutico de maconha. Partindo da ideia de que é problemática a tradicional divisão que separa as substâncias consumidas nas sociedades contemporâneas em medicamentos prescritos, de um lado, e drogas proscritas, do outro, a proposta é refletir sobre ambiguidades e deslizamentos de sentidos dos usos desta planta-substância-droga-medicamento. Evocando a noção de pharmakon (Góngora, 2017), em que é possível perceber a maconha não como um valor absoluto em si, mas tendo seu caráter – terapêutico ou recreativo, legal ou ilegal, moral ou imoral – construído e definido de forma relacional e complexa, tomo familiares de pacientes e ativistas canábicos e antiproibicionistas como interlocutores de modo a refletir sobre novas formas de conceber e possibilitar o uso da maconha, assim como novas formas de demandar ao Estado a permissão legal para seu acesso. Esses discursos e práticas de uso ocorrem de forma independente, mas não isolada dos discursos e práticas legais de aparatos estatais estabelecidos para regular o consumo dessas substâncias. Em um primeiro momento, portanto, pretendo refletir sobre o significado da mudança de status formal de duas substâncias presentes na maconha. A reclassificação do CBD e THC nas listas da Agencia Nacional de Vigilância Sanitária acontece sem que isso altere o status legal da maconha como droga proscrita. Em seguida, busco fazer uma reflexão sobre o status moral do uso de maconha a partir de relatos de mães e pais de usuários medicinais.
Farmacopeia Política: Uma etnografia do anti-proibicionismo e as lutas pela libertação da maconha na Colômbia.
Autoria: Andrés Leonardo Góngora Sierra
Autoria: A “guerra contra as drogas” na Colômbia é mais do que uma imposição neocolonial unilateral. Pelo contrario, ao longo da história tem havido um grande número de aliados (os agentes locais da “cruzada proibicionista”), mas também de respostas diversas de atores que disputam com o Estado e com a indústria farmacêutica a faculdade de produzir, negociar, e usar plantas e compostos químicos com potencial psicoativo. Baseado no work de campo desenvolvido entre 2013 e 2017 nas cidades de Medellín, Bogotá e o Eixo Cafeeiro, mostro como os principais argumentos que suportam a malha de símbolos, materialidade e performances chamada de “anti-proibicionismo”, tem a ver com as fronteiras imprecisas entre economia, moral, ciência e política, que alguns atores socais demarcam e ampliam constantemente para justificar suas perspectivas sobre o controle dos sistemas de intercâmbio e sobre o valor da liberdade e da vida. Para explorar etnograficamente o “anti-proibicionismo” sigo a trilha traçada pela maconha (Cannabis sativa L., Cannabis indica) e seus defensores, mostrando sua importância nos atuais debates sobre direitos individuais, políticas públicas, pesquisa científica, surgimento de novos mercados e conformação de coletividades. Considero que a leitura antropológica destas lutas é relevante para entender as formas contemporâneas de governo e a constituição de causas político-morais de diferentes escalas que se articulam para conceder ao pharmakon valor terapêutico, místico, recreativo ou aniquilador.
Genealogia das drogas na ONU e considerações sobre a gestão global do proibicionismo
Autoria: Dayana Rosa Duarte Morais, Martinho Braga Batista e Silva (IMS/UERJ)
Autoria: Em 1989, Luis Carlos Galán era o candidato que liderava as eleições presidenciais da Colômbia. Declarado inimigo dos cartéis de drogas, especialmente o cartel de Medellín, liderado pelo lendário Pablo Escobar, o político defendia um tratado de extradição com os Estados Unidos para que os traficantes colombianos cumprissem pena fora do país. Enquanto fazia um comício na cidade de Soacha, foi morto a tiros, escancarando o poder e o atrevimento dos chefes do tráfico. Um mês depois, o então presidente colombiano, Virgílio Barco Vargas, fez um chamado na Sessão Ordinária da Assembleia Geral da ONU para que fosse realizada uma Sessão Especial para discutir especificamente os problemas da política de “drogas” no mundo. A primeira UNGASS, fruto desse chamado, aconteceu no ano seguinte, com o objetivo de impulsionar a Convenção contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, criada em 1988, assombrada pelo fantasma do terror da violência aplicada por cartéis do narcotráfico, por organizações paramilitares, guerrilhas e policiais, pelo exército colombiano e até por forças de segurança estrangeiras no país. O resultado não seria outro que não um documento que reforçou as convenções sobre “drogas”, todas baseadas na lógica da repressão à produção, comércio e consumo. Na UNGASS seguinte, em 1998, sob forte influência das demandas dos governos dos Estados Unidos e Rússia foi assinado um acordo entre os Estados para acabar ou reduzir significativamente a demanda e oferta de drogas em dez anos. O então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, convidou os presentes na Assembleia Geral para um brinde: “excelências e amigos, permitam-me levantar minha taça na esperança de que, no futuro, quando olhemos para essa reunião, nós nos lembremos do tempo em que o teste da nossa vontade se tornou o testemunho de nosso compromisso. O momento em que nos comprometemos a trabalhar em conjunto para nos tornarmos uma família de nações livres das drogas no século XXI”. De fato, o slogan daquela edição da UNGASS foi: “Um mundo livre de drogas: nós podemos!”. A próxima UNGASS aconteceria em 2018, porém foi adiantada em dois anos principalmente por conta de uma articulação latino-americana, representada pelo México e Colômbia, motivados pelos efeitos nocivos da “Guerra às Drogas” e contrapondo à ainda existe utopia de um mundo sem “drogas”. Dessa forma, tomamos como objeto o proibicionismo global para compreender os a gestao deste problema público e elegemos como objetivo, a partir da investigação histórica dos tratados internacionais sobre “drogas” das Ligas das Nações, 1919, até a análise dos desdodramentos das UNGASS sobre dorgas de 1990 e 1998, a investigação dos bastidores do proibicionismo na ONU através da UNGASS 2016.
Inquéritos policiais federais sobre apreensões de ayahuasca: as ambivalências da legislação e da tradição
Autoria: Fabiana Lima dos Santos
Autoria: Este artigo tem por objetivo refletir sobre o processo de criminalização da ayahuasca e a falta de proporcionalidade nas políticas públicas sobre drogas acerca do uso tradicional desta bebida, cuja substância psicoativa é proscrita pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). A metodologia utilizada foi a etnografia de documentos. Para isso, foram analisadas essas políticas públicas, em especial sob o aspecto dos usos tradicionais da ayahuasca; também foi levantada breve historiografia do processo proibicionista de seu uso no Brasil; e, conjuntamente, foi analisado o andamento processual de oito inquéritos policiais de apreensões de ayahuasca no Acre, elaborados pelo Departamento da Polícia Federal, entre os anos de 2010 e 2015, a fim de analisar a forma como são construídos os discursos das políticas públicas sobre drogas, e suas respectivas instituições diante dos usos tradicionais da ayahuasca. Por fim, ressalto que não coube a este estudo antropológico fazer uma avaliação dos seus resultados e eficácia dessas políticas públicas, mas sim, observar as dimensões simbólicas e performáticas do Estado dentro delas.
O nixi pae dos Huni Kuin: reflexões sobre arte e experiências com psicoativos
Autoria: Sandra Lucia Goulart
Autoria: Esta apresentação tem como tema algumas manifestações artísticas atuais que se relacionam com as tradições da bebida psicoativa ayahuasca (nixi pae) dos indígenas Kaxinawa, mais recentemente autodesignados Huni Kuin, povo que habita uma região de fronteira entre o Brasil e o Peru. Destacamos particularmente o caso do MAHKU - o Movimento dos Artistas Huni Kuin. Ele foi idealizado pelo Huni Kuin Ibã Sales, mas se desenvolveu a partir da parceria deste indígena com o educador Amilton Mattos. O MAHKU nasce como um movimento de traduções de linguagens, quando Ibã Sales passa os cantos do nixi pae para a escrita e para um gravador (áudio), e posteriormente, os traduz para desenhos e pinturas figurativas, começando a transmitir para jovens Huni Kuin novas técnicas de desenho das narrativas míticas do nixi pae. As obras do MAHKU abarcam, também, registros audiovisuais e uso do meio digital. Além disso, o MAHKU tem elaborado obras multimídia em conjunto com artistas não-indígenas ligados à arte conceitual. Este movimento adquiriu projeção internacional, se inserindo no circuito global de arte contemporânea. Os murais do MAHKU, expostos em museus e galerias de vários lugares do mundo, manifestam mediações entre lógicas indígenas e concepções não-indígenas, tais como: magia, seres ecantados, tradição, produção coletiva e interespecífica (do universo indígena); e técnica, arte, artista, autoria subjetiva (do campo artístico ocidental). Argumentamos que o MAHKU está alinhado a dinâmicas e processos mais amplos, que vem ocorrendo em todo o mundo. Nesse cenário, a participação de indígenas no circuito da arte contemporânea tem sido frequente, e parece se relacionar a ações e estratégias de reconstrução étnica e de reconhecimento social destes sujeitos. Este tipo de ação tem assumido relevância, também, em movimentos étnicos de demais minorias políticas. Entendemos que todo esse conjunto de fatos aponta para, em primeiro lugar, um maior destaque da cultura nas ações políticas e, em segundo lugar, para uma recorrência mais constante das linguagens midiáticas das sociedades complexas nestas ações. Nesta comunicação refletiremos como um psicoativo (nixi pae), usado num contexto indígena, pode se transformar num importante agente de atuais mobilizações étnicas e políticas de minorias, possibilitando traduções e mediações entre diferentes linguagens e perspectivas: das sociedades complexas modernas e das sociedades tradicionais.
Produção da história de vida em ambulatórios para tratamento de dependência com drogas: notas etnográficas
Autoria: Wander Wilson Chaves Junior
Autoria: Esta comunicação traz algumas reflexões e hipóteses a partir de minha pesquisa de doutorado, ainda em andamento, intitulada "Uma anarqueoetnografia entre hábitos, adicções, dependências e prazeres com drogas e/ou substâncias". A pesquisa está sendo realizada por meio de work de campo realizado em dois ambulatórios para tratamento de dependência com drogas, ambos vinculados à departamentos de psiquiatria de duas universidades públicas da cidade de São Paulo. Cada campo teve duração de um ano acompanhando o funcionamento dos serviços de saúde. Esta apresentação focará nas reuniões de equipe dos profissionais de saúde e nas falas dos usuários de drogas em tratamento que aparecem nos grupos terapêuticos. Ao longo dos campos, notou-se que as falas sempre variavam em tradução, o que alguém disse sempre muda um pouco quando retorna pela boca de outro, incluso aqui, o caderno de campo que transcreve. Uma das expressões recorrentes nos serviços de saúde era história de vida. A partir dessas experimentações de campo tentará se delinear algumas possibilidades de como se fundam coletivamente estas histórias de vida dos usuários de droga em tratamento.
Proibicionismo ou liberalização? Um estudo sobre os significados da Cannabis no debate público brasileiro
Autoria: Allana Facchini da Silva
Autoria: Considerando as atuais medidas proibicionistas adotadas pelos Estados nacionais e os efeitos sociais de décadas de uma política agressiva, repressiva e ineficaz de combate às drogas, esta pesquisa, ainda em curso, tem o objetivo de compreender os significados implicados na construção dual de posições públicas favoráveis e contrárias à liberação da maconha no Brasil. A intenção é refletir sobre o modo como atores tão diversos quanto políticos, ativistas e jornalistas, percebem e atuam na esfera pública produzindo e reproduzindo os argumentos presentes no debate atual sobre o tema. Ressaltando o agigantamento do poder do Estado e o aumento de sua inferência na sociabilidade da sociedade civil, esse work busca compreender como uma política que se diz “antidrogas” pôde não só possibilitar como fortalecer a formação e o poder do comércio ilegal, mais especificamente do narcotráfico. Nessa perspectiva, levando em conta que o combate às drogas se assenta tanto no âmbito das políticas públicas nacionais quanto no Sistema internacional, o work em curso busca levantar a discussão presente na sociedade brasileira a respeito do combate às drogas, considerando a importância de analisar os nexos presentes entre a esfera nacional e internacional no que diz respeito à regulação das drogas. Para isso, o projeto utiliza como referência de correspondência temática, os processos que ocorreram e estão ocorrendo acerca da legalização da Cannabis no Uruguai, entendendo que tal reflexão pode auxiliar na compreensão do “estado da arte” acerca da liberação da maconha do Brasil. Reconhece-se, todavia, as limitações para que seja apreendido o “estado da arte” na sua totalidade, o que não impede que mesmo assim o estudo deixe de oferecer possíveis contribuições para o debate atual acerca do tema. Dessa maneira, considerando o objeto de pesquisa como multidisciplinar, o presente work se propõe agregar no debate do tema as potenciais contribuições de perspectivas da antropologia, da ciência política e da sociologia.
Reconstruir o tempo, refazer sujeitos: tempo e subjetivação em Comunidades Terapêuticas
Autoria: Matheus Caracho Nunes
Autoria: O presente paper visa discutir o papel da administração do tempo como técnica disciplinar utilizada pelas CTs, em seu projeto de promover transformações subjetivas naqueles que se submetem a sua metodologia de tratamento contra o uso problemático de drogas. Os elementos empíricos que provocaram esta reflexão emergiram de works etnográficos realizados em algumas CTs brasileiras, assim como do survey da pesquisa Perfil das Comunidades Terapêuticas brasileiras, coordenada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2017) . Por força desta pesquisa, realizei work de campo intensivo em duas Comunidades Terapêuticas localizadas em diferentes regiões do Brasil. Nelas permaneci hospedado por períodos de 15 a 17 dias, participando do cotidiano dos residentes, acompanhando suas rotinas e realizando entrevistas e conversas informais com os diversos atores vinculados às instituições pesquisadas: residentes, terapeutas, monitores e dirigentes . A partir de vivência intensiva nestes espaços, e a despeito das particularidades encontradas em cada um deles, observou-se que, para além das formas discursivas e reflexivas pelas quais as CTs, de modo geral, procuram convencer e motivar seus internos a “mudarem de vida” – começando por abandonarem o hábito de consumir drogas – elas também adotam algumas estratégias e dinâmicas muito práticas, no decurso da internação, que operam no sentido de estimular o engajamento dos internos neste projeto. Entre elas destacamos a gestão do tempo dos internos, que se dá tanto no plano prático, das atividades cotidianas, quanto no plano simbólico, das representações sobre o tempo. Pode-se dizer que, de modo geral, a metodologia das CTs, baseada no tripé disciplina-work-espiritualidade, busca promover mudanças de comportamento e de atitudes nos sujeitos que se submetem a seu modelo de tratamento – mudanças que pretensamente iriam mais além do que sua mera relação com as drogas.
Redução de danos, disputas jurisdicionais e governança de usuários de drogas: Notas sobre a crise dos opioides e a legalização da maconha no Canadá
Autoria: Joao Gustavo Vieira Velloso
Autoria: Esta comunicação visa discutir algumas inciativas recentes na governança de usuários de drogas no Canadá e como elas se articulam ou não com a idéia de “redução de danos” e com éticas de intervenção mais associadas à saúde pública. Mais particularmente, eu abordarei duas questões-chave presentes no debate atual em torno das drogas no Canadá: 1) a utilização de “locais de consumo supervisado de drogas” ou de “locais de prevenção de overdose” no contexto da crise dos opioides sintéticos (fentanil); e 2) a descriminalização e a legalização da maconha. Ambas situações sugerem uma alteração das lógicas presentes nos regimes de controle de usuários, saindo de uma quase-exclusividade da criminalização dos usuários ao uso de formas mais inclusivas de intervenção, tais como programas de redução de danos isentos de qualquer tipo de contrapartida em termos de tratamento por parte do usuário. No entanto, tais inovações não ocorrem de uma maneira simples, homogênea e coerente, até mesmo porque existem diferentes jurisdições em jogo e operando em diferentes escalas de regulamentação jurídica estatal (Federal, Provincial e Municipal) e de regulamentação normativa. Neste sentido, explorarei brevemente os quebra-cabeças jurídicos presentes nestas duas situações e como eles nos auxiliam igualmente a refletir de uma maneira mais geral sobre os movimentos de reforma de direito, seja ele no âmbito legislativo ou jurisprudencial, e as possibilidades concretas de mudança social (Falk Moore, 1973).
Reflexiones sobre la expansión y legalidad del campo peyotero en México
Autoria: Mauricio Genet Guzmán Chávez, Beatriz Caiuby Labate
Autoria: Este trabajo propone hacer un mapeo y clasificación inicial de los usos contemporáneos no indígenas del peyote (Lophohora williamsii) en México, basados en la literatura especializada y en investigación de campo. Planteamos también una reflexión sobre las implicaciones del uso y comercio del peyote y los desafíos de su conservación en un contexto binacional (México y Estados Unidos). Damos importancia central a la controversia suscitada por la Iglesia Nativa Americana de México (INAM) ante el Estado mexicano en su solicitud turnada ante la Dirección General de Asociaciones Religiosas de la Secretaría de Gobernación para obtener su registro y poder realizar rituales que incluyen el consumo de esta cactácea. Este caso es único y no ha recibido ninguna atención de la literatura especializada hasta hoy. Es relevante porque ilustra de manera paradigmática los entramados de las políticas de drogas y de derechos religiosos operadas por el Estado mexicano. Estas demandadas concretas de actores específicos involucrando sustancias o bienes de importancia ecológica y religiosa deben ser examinadas a la luz de derechos humanos y derechos de libertad religiosa bajo el sistema prohibicionista internacional y el milieu global del transnacionalismo cultural.
Reflexões etnográficas sobre a relação entidades / possessão e o uso ritual de bebidas alcoólicas em centros Umbandistas do Litoral Norte da Paraíba
Autoria: Geraldo de França Alves Junior
Autoria: Este work trata das relações existentes entre as entidades manifestas nos centros religiosos de Umbanda localizados no Litoral Norte da Paraíba, localizado na região Nordeste do Brasil, especificamente na cidade de Rio Tinto. O foco principal dessa pesquisa reside na descrição etnográfica do uso ritual do álcool em momentos importantes da agenda cerimonial desses grupos religiosos, bem como de suas normas, como em saídas de santo, dias de toque e festas: momentos rituais de importante expressão, nos quais os usos rituais de bebidas como cachaça, vermute, vinho, cerveja, espumante e outros, são realizados de diferentes formas, como, por exemplo, quando consumidas por entidades que constituem e participam da cosmologia que embasa a rotina ritual e os momentos litúrgicos significativos para a expressão religiosa desses grupos. Ao mesmo tempo, essa pesquisa pretende contribuir para o debate sobre o significativo papel das bebidas alcoólicas na constituição cultural brasileira, realizando uma leitura de autores clássicos como Câmara Cascudo (2006) e contemporâneos como João Azevedo Fernandes (2011). Indo além do debate médico-farmacológico – sem desmerecê-lo – o que propomos, a partir da experiência etnográfica, é que reflitamos sobre formas alternativas de perceber tais usos e costumes dentro da religiosidade afro-brasileira, sob o prisma dos estudos de enteógenos (MacRae, 1992). Pensando a partir de Erving Goffman (2008), por exemplo, percebemos o uso dessas substâncias não como complemento de uma parte alegórica dos rituais umbandistas, mas como partes do equipamento expressivo que essas manifestações vêm construindo ao longo do tempo, e por isso, passíveis de uma compreensão histórica, sociológica e antropológica. O uso ritual do álcool é, portanto, parte da persona construída por essas entidades, da sua força e dos papéis que desempenham, ou seja, uma forma de ligação entre o plano terreno e o espiritual. Desta maneira, esta é uma interpretação que se distancia de uma visão muito difundida no senso comum, segundo a qual a ação de se fazer uso de bebidas alcoólicas constitui um sinal de desconfiança das intenções e expressões religiosas desses umbandistas. Sendo assim, a partir da análise etnográfica das diferentes entidades e possessões envolvidas nos rituais realizados por esses religiosos, pretendemos discutir sobre como a relação entre estes e o uso ritual do álcool formam, ainda, os símbolos representativos e a fachada ritual da Umbanda no Litoral Norte da Paraíba.
Uma etnografia do cultivo da Cannabis nas cidades do Rio de Janeiro, João Pessoa e Florianópolis.
Autoria: Pedro Fernandes Leite da Luz
Autoria:

Nosso work consiste no relato etnográfico das cenas de cultivo de Cannabis nas cidades do Rio de Janeiro, João Pessoa e Florianópolis e no esforço comparativo de entendê-las antropologicamente. Resulta nossa pesquisa de um work de campo e observação participante no meio de cultivadores nas cidades referidas que remonta ao ano de 1992 e se prolonga até os dias de hoje. Pretendemos elucidar discursos e representações nativas em torno da atividade do cultivo da Cannabis com o intuito de avaliar a correção e aplicabilidade do conceito de "cultura canábica" proposto por Verissímo (2016). Também pretendemos confrontar a descrição das redes de comércio de drogas na classe média descritos por Grillo (2008) com as estratégias de escoamento de excedente de que se valem cultivadores de Cannabis nas cidades referidas. Nossa etnografia aponta para características e estratégias comuns aos cultivadores, bem como mudanças significativas no discurso que esses se valem para justificar suas atividades com a incorporação de práticas e falas que os aproximem da luta pela legalização medicinal da Cannabis no Brasil.

Uso de medicamentos nootrópicos para aprimoramento cognitivo: análise socioantropológica do blog “Cérebro Turbinado”.
Autoria: Bruno Pereira de Castro, Elaine Reis Brandão.
Autoria: O consumo de substâncias com o propósito de aprimorar a performance de processos mentais/neurocognitivos (memória, concentração, estado de alerta) tem objetivos específicos que, em grande medida, residem na expectativa de se obter melhor desempenho em tarefas acadêmicas e profissionais. As chamadas “smart drugs” ou fármacos nootrópicos têm se expandido entre jovens mediante disseminação pela internet. O work se propõe analisar a difusão do uso de medicamentos para aprimoramento cognitivo em blog nacional especialmente voltado para esse fim, designado “Cérebro Turbinado”. Esta pesquisa se insere nos marcos teórico-metodológicos das Ciências Sociais em Saúde, adotando uma perspectiva socioantropológica. A metodologia adotada foi a pesquisa documental, baseada em materiais de divulgação científica sobre uso de medicamentos nootrópicos e “smart drugs” para aprimoramento cognitivo. O material empírico compreende o conteúdo divulgado no blog “Cérebro Turbinado”, criado em 2015 por um estudante de medicina de uma universidade pública, além de reportagens sobre o tema em mídias de grande circulação nacional. O blog analisado funciona como um meio para a propagação de saberes biomédicos entre público leigo, reunindo conhecimentos sobre psicofarmacologia e neurociências. Nele, os nootrópicos são apresentados como opções mais acessíveis, seguras e igualmente eficazes frente aos medicamentos psicotrópicos utilizados como “smart drugs”. Editor e leitores se voltam para produção de um saber coletivo sobre o uso dessas substâncias para otimização do desempenho cerebral, a partir de suas experiências pessoais com o uso destes fármacos. A análise dos dados evidenciou a exposição de dúvidas quanto à eficácia e risco dessas intervenções farmacológicas, assim como questões sobre ajustes posológicos e interações medicamentosas. Ao tratar de consumos off-label, os usuários são, em grande parte, jovens universitários e estudantes em preparação para concursos públicos e vestibulares. Na esteira dos processos de (bio)medicalização e farmacologização da sociedade, o compartilhamento de práticas e conhecimentos sobre tais substâncias aponta para a incorporação de discursos de verdade fundamentados nos saberes biomédicos e para a produção de novas formas de subjetividade baseadas na compreensão neuromolecular do cérebro, entre metáforas que visam tornar compreensíveis os mecanismos de ação e a eficácia dessas substâncias. As racionalidades que direcionam a gestão dos usos desses medicamentos evidenciam as perspectivas trazidas pelos potenciais usuários e desafiam as instâncias de controle normativo do cuidado em saúde, além de revelarem o poder de agenciamento conferido às próprias substâncias e os sentidos que lhes são atribuídos nos processos de socialização.
“Quem mexeu no meu queijo?”: um estudo sobre o uso de drogas e a rede de atendimento à população em situação de rua em Recife
Autoria: Camila Borges da Silva
Autoria:

Comumente, as instituições pensam o uso de drogas a partir do que motiva o indivíduo a usá-las. A resposta, segundo Eduardo Viana Vargas (2006), é que o uso de drogas ainda é associado a uma falta ou fraqueza física, moral, psíquica, cultural ou social. Essa perspectiva toma maior proporção quando pensamos em públicos que estão na linha de extrema pobreza, em vulnerabilidade social ou em situação de rua. Os interlocutores que participam da pesquisa vivenciam a rua como espaço de moradia e work, mas o termo “ indivíduo em situação de rua” é preferencialmente utilizado para atribuir à rua um caráter de transitoriedade, não como principal categoria identitária do indivíduo (GIOGERTTI,2006). São diversos os fatores que levam uma pessoa às ruas, tais como a adicção a alguma droga, transtorno mental, conflitos na comunidade e falta de remuneração salarial. Silvia (2009) define a população de rua como “grupo populacional heterogêneo, mas que possui, em comum, a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular”, também englobando aqueles indivíduos que estão temporariamente em albergues ou abrigos. Este work tem como objetivo, a partir da perspectiva antropológica, entender e apresentar como se dá a política sobre drogas voltadas à população em situação de rua em Recife. Pretende-se também compreender a relação entre a estrutura dessa política e a repercussão na adesão do público alvo. O contato com os interlocutores surgiu em espaços de atendimento à população em situação de rua, vinculados à rede municipal de assistência social e direitos humanos, assim registramos as informações contidas neste work com utilização de diário de campo e observação participante. Na escuta às pessoas em situação de rua, era comum o relato sobre uso de drogas, principalmente o Crack (queijo), o tabaco, o álcool, a cola e a maconha. Anteriormente, as instituições vinculadas ao Estado, como o programa Atitude, dialogavam com o discurso e a prática da redução de danos, em que não há uma apologia às drogas, mas sim uma relação de entendimento e cuidado sobre as diferentes formas de vivenciar a prática do uso de drogas. No entanto, a partir de 2016, o Estado firmou parcerias com Comunidades Terapêuticas, onde era comum a presença do discurso “antidrogas” nas instituições, trazendo força de lei a um consenso moral. Por fim, o estigma (GOFFMAN, 2012) e as políticas proibicionistas adotadas pelo Estado, as quais não consideram as subjetividades e diferentes contextos que envolvem o uso de drogas na vivência de rua, constroem barreiras que dificultam o acesso da pessoa em situação de rua às instituições sociais e de saúde que se propõem a atuar no cuidado relacionado ao uso intenso de drogas.

“A doce independência de não escolher”: Medidas educativas como punição no itinerário judicial dos usuários de substâncias ilícitas
Autoria: Fernanda Nathali Carvalho Soares
Autoria: O presente estudo, resultado da dissertação defendida em 2012 no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília, teve por objetivo pesquisar como os usuários de substâncias psicoativas ilícitas experienciam o itinerário judicial cominado pelo Estado. A pesquisa etnografou e analisou uma das penas previstas pela Lei de Drogas - “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo” (art. 28, inc. III). Essas sanções, transformadas discursivamente em “benefício” pelo Juizado Especial Criminal de Brasília (JECrim), são marcadas tanto pelo pretendido horizonte ressocializador quanto pela submissão a sutis punições, equilibrando-se entre a ambiguidade do discurso da intervenção mínima do direito penal e a ampliação desse estado penal. A pesquisa de caráter etnográfico implicou em entrevistas semi-estruturadas com usuários que acompanhei durante o itinerário e na observação participante não só das audiências em um JECrim, como também no cumprimento dessas “medidas”. Foi possível inferir que tais “medidas” apesar de serem conjugadas como um “benefício” configuram uma punição a despeito do arranjo normativo-institucional que a cerca discursivamente como uma intervenção protetiva. Essa pesquisa permitiu compreender a partir do ponto de vista do usuário jurisdicionado como experienciam as sanções e o itinerário judicial imposto; expôs como os mecanismos de disciplina na sociedade do controle se sofisticam e se atualizam na política de drogas vigente no Estado brasileiro e permitiu observar a tensão produzida pelo encontro dos sujeitos à punição com a justiça penal, expondo os dilemas éticos, morais e políticos abarcados pelo tema.
“Dignidade”, “doença” e “remédio” Uma análise da construção médico-jurídica da maconha medicinal
Autoria: Luana Almeida Martins, Frederico Policarpo de Mendonça Filho
Autoria: Este artigo surgiu a partir de uma pesquisa em andamento que se interessa em compreender de que maneira a maconha medicinal tem ganhando espaço no Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro, tanto no que diz respeito aos ativistas que a defendem quanto em relação a médicos, juízes, promotores, advogados e demais atores que têm sido interpelados a debater e atuar em casos em que o uso medicinal é referido. Neste artigo específico, o foco está no judiciário e na medicina, partindo do pressuposto que não se pode falar em uso medicinal de maneira abstrata, mas sim em uma construção de um uso específico de uma substância, diferenciado de outros – como o recreativo ¬–, por determinados sujeitos, em determinados contextos. Para esta análise, nosso recorte são os casos que chegaram à justiça por meio de um pedido de um salvo conduto para cultivo caseiro da maconha para fins medicinais, por meio de um habeas corpus. A questão se estrutura partindo da compreensão de que não há um uso medicinal que não seja construído enquanto tal, e o objetivo deste artigo é descrever como este uso tem se estruturado a partir dos discursos médico-jurídicos. Para isso, em termos metodológicos, fazemos uso de entrevistas com juízes e médicos que atuaram nesses casos, de forma a descrever o que eles compreendem por uso medicinal. Uma categoria central que utilizamos para essa reflexão é a dignidade, tendo em vista que o uso medicinal tem sido justificado judicialmente em referência ao “princípio da dignidade da pessoa humana”. Além disso, para ter acesso jurídico ao uso medicinal, é preciso ser doente, e para que isso seja construído, é necessário ter uma prescrição de um médico que receite a maconha para o tratamento de uma doença. Nesse ponto, observamos a interlocução do discurso médico com o discurso jurídico, no sentido de que são estes que vêm legitimando a concessão do salvo conduto para o cultivo caseiro da maconha. Como o judiciário legitima um uso em detrimento do outro? Quem são as pessoas dignas ao uso medicinal? Que doença pode ser tratada por intermédio do uso da maconha? São estas questões que orientam as reflexões que serão expostas no artigo.
“O Pharmakon e a vida ou a vida pharmakon?”: Algumas reflexões sobre narrativas de consumo de psicofármacos no contexto universitário
Autoria: Esmael Alves de Oliveira
Autoria: Este work, em andamento, é parte de minha pesquisa de pós-doutorado vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS/UFRGS) e desenvolvida junto ao Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde (Nupacs). Ao tomar como base a narrativa de professores universitários e estudantes de pós-graduação que fazem uso de ansiolíticos e/ou antidepressivos, o intuito é compreender quais os sentidos atribuídos à experiência da medicalização bem como o pano de fundo em que se desenrolam. Se diversas pesquisas têm apontado para o aumento no consumo de psicofármacos pela sociedade em geral, pouca atenção tem sido dada com relação a esse crescimento também no contexto universitário. Em um cenário dominado pelo o que os autores têm chamado de farmaceuticalização da vida (Biehl, 2008; Illich, 1975), a antropologia tem cada vez mais problematizado as várias possibilidades de compreensão deste fenômeno. Assim, seja ao levantar questões de ordem ética, política e econômica que atravessam as intervenções da Bigfarma (Petrina, 2009), seja ao evidenciar a dimensão biopolítica das práticas de medicalização da vida (Vieira, 2002; Azize, 2010) ou mesmo ao refletir sobre os processos de subjetivação e estratégias de agenciamento dos sujeitos “medicalizados” (Biehl, 2005; Silveira, 2000) - aspectos que certamente não podem ser tomados isoladamente - , a perspectiva antropológica mais uma vez nos convida à uma compreensão desnaturalizada das práticas e experiências dos sujeitos contemporâneos. É a partir deste movimento de desnaturalização que busco compreender a experiência do consumo de psicofármacos. Para isso, tomo como norte algumas questões: Afinal, sujeitos medicalizados ou relações medicalizadoras? A relação entre sujeito e medicamento é unilateral? Seria a noção ontologizante “sujeito medicalizado” suficiente para dar conta da experiência dos diferentes sujeitos e de seus processos de subjetivação e agenciamento? São aspectos que esta pesquisa buscará explorar.