Cinque Terre
GT 047. Nas tramas do viver: entre governos, escritas e antropologias da dor
Natália Corazza Padovani (Pagu / UNICAMP) - Coordenador/a, Leticia Carvalho de Mesquita Ferreira (CPDOC/FGV) - Coordenador/a
Este GT dá continuidade há um debate iniciado em 2015, que respondia a três distintas ordens de problemas: a dimensão ética da dor, as técnicas de governo e a escrita etnográfica. Preocupados por aspectos do viver que muitas vezes são esquecidos, sublimados e controlados, mas, todavia constituem e animam a vida cotidiana, neste GT, propomos, agora, uma nova rodada de debates. Para tanto, temos o intuito de reunir etnografias que analisem as variadas articulações entre técnicas de governo e modalidades de sofrimento, explorando tais dilemas a partir de diferentes perspectivas. Seu viés analítico – o desafio de transpor terminologias locais para termos correlatos como “dor”, “sofrimento”, “sofrer”; os desafios metodológicos – como fazer etnografia de/em situações de sofrimento?; e suas composições éticas - até onde ir na partilha da dor com nossos interlocutores? Como evitar uma compaixão desenfreada ou um desejo de governo renovado? Ao acreditarmos que o sofrimento/dor apresenta-se como condição comum a variados contextos de pesquisa, esperamos receber contribuições que, independentemente de vínculo disciplinar, estejam, por um lado, atentas a como a força ética produtiva do sofrimento pode, em muitos contextos, ceder espaço à força produtiva do governo, a fim de produzir sujeitos e populações governáveis. E, de outro lado, não se furtem a descrever a dor como modo de viver o mundo, cujo modo situado de análise incide em formas de narrar e produzir etnografia.
Resumos submetidos
De compromissos a autoridades: fazer etnografia em um ambiente politizado pelo sofrimento
Autoria: Desirée de Lemos Azevedo
Autoria: Em 1990, foi encontrada no Cemitério Municipal Dom Bosco, no bairro de Perus, São Paulo, uma vala comum clandestina que, conforme as denúncias da época, teria sido criada para ocultar corpos de militantes assassinados pela Ditadura (1964-1985), os chamados desaparecidos políticos. Após 28 anos, a identificação das ossadas então exumadas segue como um processo inacabado, atualmente a cargo de uma equipe forense multidisciplinar. Essa identificação tanto se mantém como uma das demandas mais particulares e sensíveis de cada familiar que reivindica publicamente um desaparecido político, quanto se torna uma questão de Estado inserida em um conjunto mais amplo de políticas públicas que visam reparar as violações cometidas à época. Partindo de uma pesquisa etnográfica realizada junto à equipe, com o objetivo de compreender o processo de atribuição de identidade a tais ossadas, o presente work procura refletir sobre o papel do sofrimento na articulação das dimensões sensível e governamental da identificação, e sobre como ele atravessa a construção das distintas autoridades enunciativas que surgem em torno à nomeação dos corpos. Ao explicitar minha própria inserção e participação nesse processo, entre os papéis de pesquisadora e colaboradora, pretendo também refletir sobre questões éticas implicadas tanto na construção da autoridade etnográfica, quanto na relação política e afetiva com antigos interlocutores.
De laudos e fotografias periciais: o que palavras e imagens comunicam sobre dor e violência?
Autoria: Cilmara Veiga Lima de Melo
Autoria: A presente comunicação tem por objeto de análise os laudos de perícia de local que compõem os autos dos processos criminais de Dona Rosa e Dona Camélia. As duas foram, respectivamente, a primeira e a última vítimas do Maníaco Matador de Velhinhas, que assassinou cinco mulheres com idades entre 58 e 76 anos, entre os anos de 1995 e 1996, na cidade de Juiz de Fora, no interior do estado de Minas Gerais. Além de registrar as considerações do perito a respeito dos locais dos crimes, dos cadáveres e dos ferimentos encontrados nos corpos das vítimas, os laudos produzidos pelo Instituto de Criminalística foram remetidos à delegacia ilustrados por três fotografias, no caso de Dona Rosa, e sete fotografias, no caso de Dona Camélia. Direcionando o olhar para esses documentos, o interesse da reflexão aqui proposta se localiza nos interstícios entre o que as fotografias congelam como imagem (Sontag, 2003), o que os laudos descrevem enquanto escrita técnica e o que a escrita e a descrição etnográficas produzem a partir de seus interesses específicos. Ou seja, a relação entre imagem e texto enquanto distintas formas de registro. Para tanto, buscarei analisar os registros fotográficos, os enquadramentos e o foco da câmera, as legendas das imagens, a maneira e a sequência em que estão dispostas nos documentos, bem como os termos utilizados e a forma narrativa empreendida em tais escritos periciais. Nesse sentido, o desafio que se coloca para a análise e para a escrita encontra-se no próprio esforço de descrição etnográfica dessas mesmas imagens. A aposta, aqui, é que a escrita etnográfica pode não apenas informar sobre aquilo que o caráter e os procedimentos técnicos do laudo destacam e produzem enquanto vestígio e materialidade dos crimes, mas também lançar luz aquilo que ele oblitera frente à dor e à violência infligidas aos corpos de Dona Rosa e Dona Camélia.
Dobras, nervuras e latejamentos: pensando alguns não ditos em pesquisas sobre sofrimento
Autoria: Adriana de Resende Barreto Vianna
Autoria: Provocada pela proposta do GT, gostaria de trazer alguns pontos para nossos works sobre sofrimento. O primeiro deles diz respeito à possibilidade de reinstauração de hierarquias entre pesquisador(a) e interlocutore(a)s a partir de certa economia emocional. Se, como nos provoca Veena Das, reconhecer a dor do outro significa abrir-se a um jogo de linguagem, podemos pensar que o processo de pesquisa como um todo exige a confecção de territórios coabitados de sofrimento, por mais que as posições e repertórios subjetivos sejam diferentes para cada um(a). Em que ponto, porém, a objetivação desse sofrimento compartilhado refrata-se numa forma possível de objetivação do “outro”? Ou, dizendo de outro modo, como se secciona o sofrer compartilhado em um sofrer singularizado que pertence mais à vida pesquisada que à vida experimentada conjuntamente? Como vamos nos “estrangeirizando” desses momentos em que nos sentimos copartícipes da dor vivida pelo outro para que possamos inseri-la na teia de relações que queremos compreender e narrar? Outro ponto diz respeito aos resíduos de culpa e vergonha que nascem ou da partilha de situações de sofrimento às vezes muito íntimas ou do próprio processo de conversão das dores alheias em teses e works acadêmicos de modo geral. Em diversos momentos em minhas pesquisas, mas também no acompanhamento de outros works de pesquisadore(a)s mais jovens, percebo o quão penoso pode ser lidar com os emaranhados morais-emocionais que nascem de tais processos. Não falo aqui de limites éticos sobre o que relatar ou não, ou sequer de cuidados políticos que sabemos serem necessários em variados contextos, mas de tramas afetivas que são reposicionadas quando começamos a escrever (e a publicar) histórias sobre sofrimentos “dos outros”. Parece-me que as discussões sobre ética, tão fundamentais em nosso campo, não esgotam totalmente o fato de que as relações de pesquisa se dão entre pessoas atravessadas por dramas morais. Por fim, gostaria de discutir também algo das relações complexas entre alegria e dor no processo de pesquisa. Em situações em que parte da construção pública do(a)s nosso(a)s interlocutore(a)s está fortemente ancorada no sofrimento ou na politização do sofrimento, o relato sobre as alegrias, prazeres e diversões parece especialmente deslocado ou até mesmo um ato de traição. Relações jocosas, jogos amorosos, comentários maldosos e divertidos acabam frequentemente fazendo parte das nossas “margens” de pesquisa, nossos pequenos e invertidos diários secretos malinowskianos. De que ri a antropóloga? De que riem os seus e as suas interlocutoras? Como incluir essa composição tão vital e tão banal entre alegria e sofrimento nas nossas narrativas, enchendo os textos e as análises da mesma carga contraditória que tem a vida?
Dor e sofrimento na Amazônia pós Belo Monte
Autoria: Gustavo Augusto Gomes de Moura
Autoria: Em Altamira, quase 3.500 famílias que foram deslocadas de suas moradias para 5 reassentamentos urbanos coletivos, passando a conviver com um cotidiano urbano significativamente diferente do vivido anteriormente e, no mais das vezes, sendo envolvidas em negociações com o empreendedor ou com governos e suas complexas tecnologias gerenciais e governamentais. Buscando compreender o novo cenário posto, os movimentos sociais da região articularam a realização de um ostensivo diagnóstico com esses moradores, realizando para isso entrevistas com pouco mais de 1.000 familiares reassentadas e outras atividades de debate, capacitação e negociação coletiva, integrando o projeto batizado com o nome de “A Voz dos Atingidos”. Após contextualizar o empreendimento e apresentar panorama sobre o diagnóstico realizado, o artigo debaterá como os atingidos por Belo Monte passaram a conviver com novos eventos de dor e sofrimento. A exposição vertiginosa a esses eventos resultaram em formas particulares de resiliência e, no limite, na alteração do significado de dor e sofrimento conforme experenciado pelas famílias reassentadas. É proposto o debate com autores como Foucault, Negri e Mbembe, que tem proposto a noção de biopolítica como chave para compreensão de como as tecnologias estatais e do Capital se encarnam na vida cotidiana do cidadão. O diálogo com Veena Das e sua interpretação wittgnsteiniana das experiências de dor e sofrimento, ajudam a problematizar este tema no âmbito da experiência etnográfica. Rita Segato complementa o debate com sua proposta de “contra-pedagogias do poder”, ajudando a compreender como a “a voz dos atingidos” pode ganhar força se utilizando, de forma tática mas desconfiada, de conquistas em termos de legislação ou ações governamentais que ajudam os cidadãos a nominar e ressignificar a violência sofrida. Ao final, será compartilhado aprendizados sobre o fazer antropológico em contexto amazônida e em situações limites de conflito como é o caso de territórios afetados por grandes obras.
Dor, sofrimento e vitimização como técnicas de governo: considerações a partir de dois casos de abortamento em mulheres com deficiência intelectual
Autoria: Julian Simões Cruz de Oliveira
Autoria: Nessa comunicação buscarei explicitar como as estratégias de acesso aos direitos sexuais e reprodutivas de mulheres com deficiência intelectual em situação de violência sexual são elaboradas por um idioma moral articulando dor, sofrimento e vitimização. A partir de uma pesquisa empírica realizada no Ambulatório de Violência Sexual em uma cidade do interior de SP, apresentarei dois casos de interrupção legal de gravidez. Um deles é realizado por uma garota de 13 anos e o outro por uma mulher de 27 anos, ambas com deficiência intelectual. Discutir esses dois casos ajuda a evidenciar as formas distintas de narrar cada uma das situações de violência, bem como as técnicas de governos nelas envolvidas. Isso porque, o impacto da história de violência vivenciada pela garota de 13 anos ressoou de modo a produzir uma unanimidade na decisão de autorização o aborto. Já no caso da mulher de 27 anos, o impacto da história não se deu pelo espanto produzido em função da violência perpetrada. Mas sim, pela sua condição jurídica de mulher com deficiência intelectual violada sexualmente. Por tais motivos, finalizarei a comunicação me aprofundando nas convenções narrativas utilizadas pela equipe do Ambulatório, uma vez que propiciam refletir como são construídas algumas técnicas de governo dos direitos dessa população. Como afirmado anteriormente, tais formas estão ancoradas em gramáticas emocionais que fazem emergir uma noção de vítima como modo de regulação moral dos corpos, da sexualidade, mas também de direitos e deveres.
Dor, sujeição e ativismo em um coletivo de mães de vítimas de violência estatal
Autoria: Márcia da Silva Pereira Leite
Autoria: Durante alguns anos, pesquisando coletivos de mães de vítimas de violência estatal no Rio de Janeiro, valorizei em meus works a categoria que as “mães” empregavam no espaço público para mobilizar e legitimar seus coletivos e suas ações políticas: a “dor da perda”. Dor generificada (Das, 2008) a partir da vivência dessas mulheres nos quadros da sociedade brasileira (“a mãe sofre mais...) e explicada com o recurso a Gertz (1978) e aos “laços primordiais”. Mas, acompanhando esses coletivos, me saltava aos olhos a inscrição dessa dor nos corpos das “mães”. Todas tinham “problemas de saúde”. Muitas, problemas no aparelho reprodutivo e/ou pressão alta, problemas cardíacos e diabetes – “são as dores do trauma”, diziam. Essas falas se davam em conversas privadas, nos encontros antes e depois dos atos públicos, preparando-os, ou comentando-os posteriormente. Nunca as abordei, considerando que contrastavam fortemente com a imagem da “mãe guerreira”, que tem certeza da injustiça praticada pelo estado contra o filho, e que constituía um elemento importante do repertório acionado na “luta” (Vianna e Farias, 2011; Vianna, 2014).Pretendo agora aprofundar um movimento em que tenho buscado me debruçar sobre a questão e tratá-la nos múltiplos planos em que nos convoca a pensar (e a agir): como a dor é inscrita em seus corpos, em suas subjetividades e em seus cotidianos precários. Neste paper discuto, com base em um caso etnográfico, como a dor/as dores se inscreve(m) nos corpos das “mães” e como produzem subjetividades e agenciamentos, enfocando tanto a dor física associada a doenças como aquelas produzidas pela morte simbólica do/as filho/s promovida pelo estado ao desqualificá-los como “bandidos” e traficantes, pelo aviltamento de seus cadáveres em instituições estatais, e pelo tratamento indigno conferido a elas próprias durante os processos judiciais como estratégia de deslegitimação de suas “lutas”, como indica a literatura. Penso também uma outra dor relacionada aos “trânsitos religiosos” das “mães”. Muitas são evangélicas, mas se “afastam” da igreja em sua militância, tanto porque suas igrejas não aceitam bem a sua “luta”, como porque a linguagem dominante dos movimentos sociais no país é a católica. Deste viés, discuto se e como o repertório político da “luta” vem promovendo a subordinação e o ocultamento do privado sob o público, invisibilizando mais uma dimensão e um sentido dessas dores.
Dos fragmentos pelos quais se tece uma etnografia: as habilidades, artimanhas e técnicas de fazer ver e vasculhar corpos
Autoria: Larissa Nadai
Autoria: Esta comunicação toma como objeto de reflexão alguns fragmentos por meio dos quais o IML me foi dado a ver, durante minha pesquisa de doutorado. A partir de uma constelação de diferentes materiais dou carne à pesquisa que fui, formalmente, impedida de realizar, mediante a negação de meu pedido de pesquisa analisado e indeferido pela Comissão Científica do IML de São Paulo. A fim de driblar tais indeferimentos e rituais de autorização, passei a correlacionar (ou melhor, conectar), por meio de uma etnografia multissituada (Marcus, 2001), aulas de medicina legal, vídeos, fotografias, slides, livros, necropsias e entrevistas que pude realizar ao longo de minha investigação. É sobre tais procedimentos de pesquisa e de escrita etnográfica que se debruça essa proposta de work. Busco, portanto, dar atenção às formas pedagógicas pelas quais fui incitada a aprende a ouvir, sentir odores e visualizar os corpos e seus pedaços, bem como aos desafios de escrita colocados a pesquisadores que se aventuram a lidar com tais contextos etnográficos. Das distintas sensibilidades e atenções colocadas a papéis que perscrutam corpos vivos e estuprados, cadáveres estendidos em mesas de aço reluzente e aulas de medicina legal, subleva-se minhas “ficções persuasivas” (Stratern, 2010). Todavia, o aprendizado destas técnicas de fazer ver e ensinar não é imposto somente a pesquisadores. Antes, são habilidades, artimanhas e escrutínios centrais àqueles que, como médico-legistas, exercem suas funções dentro do IML. Nesse sentido, se as sensorialidades – ver, ouvir, sentir odores, tatear – são indispensáveis a qualquer pesquisa de campo, são também aptidões decisivas aqueles que, por oficialidade, estão responsáveis pela produção de provas materiais. A fim de explorar tais conexões, esta presente comunicação utiliza-se dos meus próprios desconfortos frente a cadáveres e roturas himenais, para lançar luz às modalidades de conhecimento e governo destinadas a certos corpos, lesões e crimes. Além disso, ao unir esses diferentes fragmentos, sem buscar esconder as linhas e apetrechos de costura utilizados em meus alinhavos, intento desnudar um poderoso artificio e ardil forjado pelas técnicas de governo: os efeitos necessários de fragmentação impostos a atuações e rotinas de work (Lugones, 2012). Em outras palavras, na contramão de uma escrita de denúncia – contra a morosidade, falta, descaso ou violência empreendida pelas instâncias estatais –, minha aposta é que as descrições etnográficas devem restitui vínculos, descrever hiatos, recolocar o sangue, as lágrimas, os odores e os incômodos engendrados por destrezas tais como: vasculhar, examinar ou perscrutar.
Fazer a guerra, produzir sofrimento: as formas de atuação estatal em favelas do Rio de Janeiro
Autoria: Alexandre Magalhães
Autoria: Minha intenção nesta comunicação é levar a sério as inúmeras vozes individuais e coletivas que falam sobre uma "guerra" em curso no Rio de Janeiro, desde a grande imprensa e as autoridades, até o conjunto dos habitantes da cidade, principalmente os moradores de favelas. Tomando como ponto de vista fundamental a posição destes últimos, buscarei demonstrar como o recurso a noção de "guerra" extrapola a ideia de uma metáfora que forneceria o mapa cognitivo a partir do qual a experiência da "violência urbana" é realizada por esses atores. Minha intenção é apontar para o fato de como a guerra é um recurso não apenas cognitivo, mas fundamentalmente político, no sentido que orienta e define o governo da vida e da morte (distribuindo-os desigualmente entre as diferentes classes e grupos sociais). Nesse sentido, sugiro pensar as relações entre os diferentes aparatos estatais e os moradores de favelas a partir do que chamei em outro lugar de "lógica da destruição", na qual a guerra emerge como o modo mesmo de governar estas populações. Para levar adiante tal empreitada, as reflexões que serão apresentadas se articularão a partir de dois conjuntos de universos empíricos, as remoções recentemente levadas a cabo pela prefeitura e a intervenção federal nas forças de segurança estaduais. Intentarei demonstrar, etnograficamente, dois processos interconectados: por um lado, como as experiências de vida destas populações se constituem a partir de uma constante exposição à morte, a formas de destruição de seus modos de existir na cidade, e a produção de dor e sofrimento. Por outro, que formas essas pessoas criam para contornar ou atravessar a destruição e a devastação para continuar existindo e reabitar a vida.
Formas de punir e formas de sofrer: Um olhar para as dimensões do sofrimento em espaços de privação de liberdade
Autoria: Roberta Olivato Canheo, Luana Almeida Martins
Autoria: Partindo de dois works etnográficos realizados em função de nossas pesquisas de mestrado, buscamos refletir, neste artigo, sobre as configurações de sofrimento dentro de espaços de privação de liberdade, a partir de duas perspectivas distintas: uma, a partir da reflexão das relações estabelecidas entre agentes e adolescentes, e de adolescentes entre si, em uma unidade de internação provisória do Departamento Geral de Ação Socioeducativa do Estado do Rio de Janeiro (DEGASE), o CENSE Dom Bosco, mais conhecido até hoje como “Padre Severino”; e outra que se constitui como resultado de uma investigação dos processos de Estado que levaram à constituição de pessoas LGBT privadas de liberdade, no Presídio Evaristo de Moraes, e de técnicas de governamentalidade - construídas por feixes múltiplos de agências, agentes, e documentos - presentes nesses processos. Ao propor essa reflexão buscamos pensar de forma comparativa de que maneira o sofrimento é compreendido enquanto uma forma de punição, estabelecendo conexão entre nossas pesquisas e as formas de gestão percebidas em locais de privação de liberdade. Nesse sentido, colocamos em pauta as relações entre estar preso e o sofrimento e entre o punir e o fazer sofrer. Essas categorias se apresentam como pontos de análise no qual nos amparamos para pensar cenas do nosso campo e descrever de que maneira encontramos relação entre punir e sofrer. Por um lado, as percepções advindas de visitas ao Presídio Evaristo de Morais permitem a visualização dos corpos enquanto lugar último de materialização de tensões constitutivas de processos de estado, de processos de gênero, de um Estado generificado. Estado que se coloca como progressista, que se pauta por uma agenda de direitos humanos, e de direitos das minorias, ao passo que, simultaneamente, produz continuamente dentro de suas malhas uma gestão precária que ratifica o lugar destinado àquelas mesmas pessoas, um lugar de abjeção. Por outro lado, ao olhar para as relações entre agentes e adolescentes, a partir da percepção da violência narrada pelos adolescentes, e as práticas punitivas observadas na unidade, percebemos uma relação entre a dimensão simbólica da violência e o sofrimento. Nesse sentido, ao observar as práticas punitivas dos agentes e de que maneira elas são compreendidas pelos adolescentes privados de liberdade, percebemos que as punições, só se configuram como sofrimento, se alteram as organizações e sistemas classificatórios compartilhados pelos adolescentes. Assim, buscamos, a partir de cenas descritivas de nossos works de campo, descrever formas de punir e de sofrer em espaço de privações de liberdade.
Na varanda, o silêncio: Notas para uma etnografia no Leprosário da Canafístula
Autoria: Rafael Antunes Almeida
Autoria: Recentemente assistimos a um florescer de pesquisas etnográficas que se voltaram ao estudo de antigos leprosários, hoje convertidos em centros de convivência e locais de moradia de ex-portadores de hanseníase. A quase totalidade das produções sobre os ex-asilados nas ciências humanas, via de regra, estiveram interessadas nas narrativas de sofrimento, dor e alijamento, narrativas estas que constituem as vidas dos internos e que, por certo, não só estão na raiz de seus processos autopercepção, como constituem um importante ponto de partida para o estudo daqueles que foram a materialização da principal política do Estado brasileiro para lidar com a hanseníase a partir dos anos 20: a internação compulsória dos portadores da doença. A matéria de work dos referidos estudos é composta por, principalmente, longos trechos de entrevistas com pacientes e ex-pacientes, descrições sobre a organização espacial das instituições e, fundamentalmente, longos prelúdios com sobrevoos sobre o lugar da “lepra” numa espécie história da perceção sobre a doença no ocidente. Ocorre que a própria forma de apresentação destes works tem em si contida uma espécie direção ou, por assim dizer, um tipo de funesta teleologia. Isto é, na medida em que tais textos se prestam à tarefa de registrar as narrativas de sofrimento e, com alguma frequência, não extrapolam a compilação de memórias, as mesmas, muitas vezes, acabam obliterando um outro aspecto ao qual um número muito menor de pesquisas deu atenção, qual seja: as disposições de relações criadas no interior dos leprosários. Isto é, a suposição de que tudo aquilo que interessa a uma etnografia sobre a hanseníase são os testemunhos do encarceramento, pode nos levar a ignorar, por exemplo, que as antigas Colônias se converteram em espaços cujas relações outros temas ganham relevo, a exemplo da problemática do envelhecimento. O presente work, resultado da pesquisa de campo que vem sendo desenvolvida na maior Colônia outrora destinada para o tratamento da hanseníase no Ceará, descreve um conjunto de situações etnográficas que apontam para práticas que tem que ver com uma certa resistência ao ato de narrar a dor. Com o fim da política estatal de internação compulsória e a permanência dos ex-asilados nas dependências da colônia, aparentemente os velhos moradores estão menos interessados em perguntas sobre os anos de reclusão, do que em diálogos sobre o que fizeram de suas vidas. Este work está informado por uma sensibilidade para o fato de que os dispositivos de produção de narrativas, entre os quais as entrevistas acadêmicas, se por um lado documentam a experiência da dor, também produzem certa recaptura discursiva dos corpos hansenianos em tramas que, embora os constituam, eles ,aparentemente, desejam esquecer.
Nas tramas dos (des)governos da dor: entre cachorros, documentos e expulsões
Autoria: Natália Corazza Padovani
Autoria: A proposta de comunicação oral refere-se a pesquisa em andamento com Auxílio FAPESP 2018/0255-8. Nesta, tomo como campo etnográfico trajetórias de pessoas egressas dos sistemas prisionais paulista e catalão para analisar como gênero, articulado a outras diferenças, opera nos entrecruzamentos entre prisão e deslocamentos populacionais transnacionais. A pesquisa analisa as relações estabelecidas entre prisão e outros aparelhos estatais de controle das fronteiras, centrando-se nos trânsitos de mulheres que saem(voltam) da(para) prisão e permanecem como migrantes irregulares nos países onde ficaram presas. Inspirada pelo tema do GT, baseio esta apresentação na trajetória de Patrick. Sapatão/homem trans sul-africano, Patrick terminou o cumprimento de sua pena sob a acusação de “tráfico internacional de drogas” no sistema penitenciário do estado de São Paulo no ano de 2012. Desde então vive irregularmente como migrante em uma cidade do interior paulista. Com a ameaça da expulsão do território brasileiro e vivendo sob a insegurança das relações de work e vizinhança, a principal razão de ansiedade e dor exposta por Patrick em nossas conversas é o medo de ser detido e expulso pela polícia federal; a qual “não vai embarcar seus cachorros junto no avião”. Ademais, a relação que Patrick estabelece com os cachorros que adota da rua, em suas palavras a sua "única família", tem feito com que, para além da expulsão movida pelo Ministério da Justiça do Brasil, Patrick seja sistematicamente expulso pelos moradores das vizinhanças onde estabelece moradia. Repetindo reiteradamente o medo de ter seus cachorros "assassinados" pelos vizinhos, Patrick tem encarnado atributos de ameaça e loucura nas relações que mantém na cidade, bem como com as amigas que conheceu na prisão e com as quais ainda mantém contado. Nas palavras de Patrick, "era mais fácil ser feliz na prisão do que fora dela". No "mundão"[fora da prisão] onde Patrick segue vivendo em irregular "liberdade" migratória, psicólogas e assistentes sociais da rede municipal representam a ameaça da expulsão e da separação de sua família: seus cachorros. A trajetória de Patrick permite analisar os (des)governos de dores e sofrimentos que não/são esquadrinhados nos dispositivos legais que governam fronteiras, fluxos transnacionais e mercados ilegais. Mas que enredam redes de assistência e moradia municipais e governo das fronteiras transnacionais. Por meio da análise das dores e sofrimentos expostos por Patrick, esta comunicação propõe analisar o que transborda dos quadros institucionais que localizam sujeitos como legais e ilegais segundo atributos de diferenciação, atividades econômicas e relacionamentos afetivos.
O enredo dos nervos: a escrita etnográfica da dor como estética das margens
Autoria: Everton de Oliveira
Autoria: Desde sua virada modernista, como classificava Roy Wagner, a antropologia preocupa-se com o problema do “presente etnográfico”, aquele efeito que situaria o etnógrafo no tempo daqueles com os quais, por alguns meses, convivia. Desde então, partilhar experiências com mulheres e homens que, por ventura, tornavam-se nossos interlocutores de pesquisa, transformou-se na pedra de toque do fazer etnográfico. Partindo dessa questão, busco analisar como a gramática da dor, que regia os modos de percepção do tempo em uma colônia alemã do sul do Brasil, possibilitou a composição de minha própria narrativa etnográfica. O work de campo foi realizado ao longo de 2015 e 2016, em São Martinho, uma colônia alemã da região da Encosta da Serra (RS), quando vivi em uma de suas vilas, a Vila dos Klein. Na colônia, falar sobre tempo era falar sobre sua relação com a dor, sobre os modos como se fala sobre a dor, assim como sobre os modos pelo qual se vive a dor, na relação cotidiana de seus moradores. Isso era sinteticamente categorizado como "sair de casa". Sair para se relacionar, na rotina da vila. Mas, fruto de muita dedicação, de muito "cuidado", a rotina não era certa. Dependia de uma boa economia do tempo, nesse cálculo alemão. Pois caso o tempo fosse por demais escasso, então a angústia se sobressaía ao agradável da vila. Homens e mulheres punham-se a ficar "nervosos", "depressivos", outros ainda "sofriam". De minha parte, foi exatamente isso que me permitiu viver a vila. Meus "nervos" acabaram abrindo-me aos "cuidados" de meus vizinhos e vizinhas, à sua atenção, a uma certa administração de palavras, movimentos e convívio para o qual eu era convidado a partilhar. Da parte de meus vizinhos, o silêncio muitas vezes surgia como possibilidade de lidar com o cotidiano, como sua gramática mais adequada. E aqui estava o problema. Essencialmente uma composição, a etnografia tende à violência em relação à experiência vivida, à partilha dos tempos, e à própria gramática da dor. O corpo do etnógrafo ou da etnógrafa se torna, aqui, uma situação nodal. Pois fruto ele mesmo dessa condição política de existência, ele se encontra situado sempre à margem de uma completude, em dores e angústias muitas vezes não significadas. A narrativa etnográfica se situava justamente nessa fissura sensível, da partilha da dor, da partilha de um tempo. Tornava-se, assim, um ato indefinido de partilhas. Pois não houve, em meu caso, uma barreira ultrapassada que permitiu o acesso ao presente etnográfico ou à lógica elementar da experiência afetiva dos colonos: quando um mundo se faz pela gramática da dor, sua tendência à incompletude prolonga indefinidamente suas margens, da ética à estética. O que restava era partilhar, meu tempo, as margens de São Martinho, no enredo do meu nervoso.
O Povo do Veneno? Questionando o conceito de suicídio entre povos indígenas
Autoria: Lívia Dias Pinto Vitenti
Autoria: Com certa frequência instâncias do governo brasileiro interpelam órgãos responsáveis pelas questões referentes aos povos indígenas sobre o evento do suicídio. Entretanto, a atribuição tanto da Funai quanto da Sesai em relação à morte voluntária não é um ponto pacífico. Sendo o tema do suicídio indígena sensível e de difícil abordagem, principalmente no que diz respeito a concepções locais de vida e morte, além dos conceitos que nos interessam especialmente aqui, seja o de dor e sofrimento, propomos uma análise crítica do mesmo. Sendo assim, o objetivo da presente comunicação é o de propor uma discussão em relação a representação e o entendimento da morte voluntária e as ações de prevenção e intervenção estabelecidas pelos órgãos supracitados, principalmente no grupo considerado de recente contato, os Suruwahá. Propomos, portanto, um debate sobre a necessidade de chegarmos a um denominador comum sobre as ações de prevenção e de intervenção sobre a morte voluntária entre os Suruwahá, posto que os mesmos estabelecem um conjunto de reflexões sobre o autoenvenenamento que não compartilhará do entendimento ocidental sobre o fenômeno do suicídio. O descontentamento, que geralmente é o propulsor das causas mortis, é motivado por diversos motivos: conflitos internos, raiva, situações geracionais, entre outros aspectos. Sobre isso, é importante observar que embora as mortes por envenenamento causem tensão no interior do grupo e comoção entre os profissionais de saúde, os Suruwahá manifestam descontentamento ao serem retratados como o povo do veneno, ou seja, aqueles que gostam de se matar por motivos fúteis. Pensando em todas essas questões e ainda sobre a explicação quase universal dada ao gesto de tirar a própria vida, ou seja, a que afirma que todos os suicidas atravessam um período de pena profunda, buscamos questionar e apontar os riscos da imposição de um entendimento de sofrimento e de dor, assim como de uma homogeneização das ações de prevenção e intervenção, operadas por aparatos do Estado, que não consideram concepções locais relacionadas à noção de pessoa, a ideia de vida/morte, saúde/doença e a perspectiva da saúde em povos de recente contato.
O Ritmo da Gestão: tempo, risco e sofrimento nas “resoluções administrativas” de litígios de saúde em um contexto de “crise”
Autoria: Lucas de Magalhães Freire
Autoria: Esse work se fundamenta em uma etnografia realizada na Câmara de Resolução de Litígios de Saúde (CRLS) ao longo do ano de 2017. A CRLS é um órgão público criado a partir da parceria entre o Tribunal de Justiça do Estado (TJ-RJ), as Procuradorias Gerais do Município e do Estado (PGM e PGE), as Defensorias Públicas do Estado e da União (DPE e DPU), as Secretarias Estadual e Municipal de Saúde (SES e SMS) e o Ministério da Saúde (MS). Fundada em setembro de 2013, a principal missão da instituição é oferecer “resoluções administrativas” para demandas relacionadas à saúde, de modo a reduzir tanto o tempo quanto os custos para solucionar judicialmente tais questões. Nesse sentido, a CRLS assume uma espécie de papel de mediação e de gestão de questões jurídicas envolvendo o “direito à saúde” através de uma atuação “extrajudicial” que preza pela solução de litígios de maneira “consensual” e “conciliadora”. A partir da narrativa de alguns casos acompanhados ao longo do work de campo, discuto de que maneira noções como a de “classificação de risco” são acionadas nesses processos de modo a definir um certo “ritmo de gestão”. Além disso, busco demonstrar como o “ritmo da gestão” está fortemente relacionado a uma retórica de “crise” que tem sido produzida e mobilizada por diferentes atores e instituições para descrever o atual quadro da saúde pública no Rio de Janeiro. A ideia de ritmo – isto é, não apenas uma sucessão de tempos, mas fundamentalmente a velocidade com que esses tempos se sucedem – é utilizada para caracterizar a regulação dos fluxos de atendimento dos “assistidos” da instituição. Assim, por meio de uma reflexão sobre o “ritmo”, tento compreender as formas pelas quais tempo, risco e sofrimento imbricam-se nas vidas de pessoas que aguardam a vacância de um leito em um hospital público; que esperam que o estoque do medicamento utilizado para controlar os sintomas de uma doença crônica seja reposto; que permanecem em filas para a realização de uma cirurgia durante anos; em suma, que se dirigem até a CRLS para demandar judicialmente o direito à saúde.
O tecer de vidas alcoólicas: uma análise da construção e (re) construção da Pessoa em grupos de Alcoólicos Anônimos
Autoria: Mariana Oliveira da Fonte
Autoria: A partir de uma antropologia que investiga as condições e os potenciais de vida entre membros de grupos de Alcoólicos Anônimos (AA) do Rio de Janeiro, procuro demonstrar ser possível encontrar em narrativas de dor, sofrimento e no seu próprio compartilhamento, sinais de vida. Indícios que apontam para caminhos que nunca deixaram de ser traçados apesar do alcoolismo e toda a morbidade com a qual a doença é rotulada. Tratar do alcoolismo como condição definidora do sujeito nos inclina à valorização do discurso da perda de autonomia individual e da sujeição à bebida, e nos afasta dos movimentos que levam os sujeitos a procurarem brechas e caminhos alternativos à esta condição. Ao longo do processo da vida, em meio ao seu curso contínuo, o sujeito experimenta a condição do alcoolismo, percebe suas implicações e traça práticas de cuidado que o permite (re) criar a Pessoa que gostaria de ser. Assim, a finalidade deste work é pensar as partilhas - termo nativo para designar o momento em que um membro de AA compartilha suas experiências com o álcool e suas dificuldades em torno da recuperação - como uma prática que permite ao alcoólico construir e (re) construir a si mesmo. A hipótese que se procura averiguar é de que a tônica das partilhas, centrada no ato de falar e ouvir, implica formas de lidar com a dor que possibilita ao sujeito alcoólico voltar-se para si, conhecer a si mesmo e refletir acerca de uma nova maneira de ser no mundo.
O tempo e no tempo da emergência: o cotidiano das mães e crianças afetadas pela Síndrome Congênita do Zika
Autoria: Russell Parry Scott, Luciana Campelo de Lira Fernanda Meira de Souza
Autoria: No segundo semestre de 2015 o aumento no número de casos de crianças nascidas com microcefalia e outras alterações neurológicas e motoras em Pernambuco e outras regiões do Nordeste, chamou a atenção dos órgãos de saúde nacionais e internacionais. Em novembro daquele ano é decretada a emergência de saúde pelo Ministério da Saúde, seguida pela declaração de emergência internacional de saúde pela OMS, em fevereiro de 2016. Na esteira desses marcos nacionais e internacionais, a experiência compartilhada por centenas de famílias que passaram a conviver com as repercussões da chamada Síndrome Congênita do Zika em seus cotidianos. Um cotidiano atravessado por incertezas e ajustes que passaram a ordenar a vida e constituir subjetividades, laços sociais e as identidades dessas mulheres em meio a uma narrativa de luta, vulnerabilidades múltiplas, sofrimentos e cansaço em meio a peregrinações diárias pelo sistema de saúde em busca de atendimento e cuidado para seus filhos e filhas. Apesar das declarações sobre o fim dessa emergência nacional e internacional de saúde nos anos subsequentes, essas famílias continuam a experimentar a noção de emergência em seus cotidianos, nos tempos encurtados pela rotina pesada de terapias, pelo tempo suspenso nas internações, pelo tempo ausente para si mesmas e para outros, pelo tempo corrido em busca de tratamento e reabilitação, e em constantes processos de submissão e resistência sobre gestão de suas vidas por parte das instituições que circulam. É nesse contexto de emergência cotidiana que a pesquisa “Etnografando Cuidados” desenvolvida pela Núcleo Fages, do Programa de pós-graduação em Antropologia, se depara com as cartografias emocionais tecidas nas narrativas e práticas dessa comunidade de mulheres e crianças, tendo como perspectiva um engajamento moral e emocional dos pesquisadores com esse grupo, esse work propõe refletir sobre os limites, contradições, emoções e vitalidade que esse tipo de imersão no campo e com o campo pode produzir.
Os testemunhos nos processos de refúgio: entre o sofrimento íntimo e o reconhecimento público da violência
Autoria: Jullyane Carvalho Ribeiro
Autoria: Proponho, com base em etnografia com mulheres refugiadas e solicitantes de refúgio na cidade de São Paulo, fruto de meu work de doutorado em andamento, uma reflexão sobre as narrativas de violência solicitadas e apresentadas em distintos espaços de reconhecimento das subjetividades refugiadas. No âmbito da governamentalidade estatal, as práticas de enquadramento dos sujeitos na categoria do refúgio exige histórias de violência e perseguição a serem legitimadas segundo critérios de credibilidade e coerência interna. O procedimento adotado nos processos – de entrevistas perante um funcionário do Estado, além do registro escrito das violações de direitos humanos que teriam sido causa dos deslocamentos – exige dos e das solicitantes de refúgio a articulação de narrativas de sofrimento coerentes com a legislação para que as dores sejam publicamente reconhecidas. Observo que a exposição de violações que pertencem à ordem do indizível (Veena Das, 2007) no cotidiano gera expectativas segundo as localizações sociais (Mahler e Pessar, 2001) ocupadas pelos sujeitos, informadas geopoliticamente. Os ideários de gênero atribuídos a nacionalidades especificas incidem em grande medida sobre essas expectativas, produzindo “nações de estupro” e corpos violados e violadores, através da exigência da exposição da violência sexual. São disputas pelo enquadramento da dor como causa política, pela retirada do sofrimento do âmbito do privado e do íntimo, informado pelas gramáticas de gênero. Inspirada nas formulações de Veena Das, assim como nas análises de Fiona Ross, proponho também uma reflexão sobre as implicações da pesquisa etnográfica que lida com os indizíveis do sofrimento, presentes nos silêncios e na exigência copiosa de falar sobre a dor. Minha preocupação perpassa principalmente os riscos do registro desses sofrimentos, passíveis de serem novamente reificados enquanto casos exemplares nas malhas do humanitarismo.
Pensar as “verdades privadas”, processos de ações políticas e fazer etnográfico entre mulheres negras.
Autoria: Cinthia Marques Santos
Autoria: O objetivo desse work é analisar o enredamento entre o fazer etnográfico e o estar afetada, ao modo de Favret-Saada (2005), a partir de uma produção escrita, reflexiva e prática de mulheres negras acerca de suas experiências constantemente atravessadas por dores e sofrimento. Os relatos de casos ouvidos e presenciados em campo são agora pensados à luz de uma Antropologia que destaca os modos de existir e os modos do Estado operar nos mais finos e reservados espaços da existência. A esfera da intimidade e da domesticidade ganham relevos que auxiliam a compreensão de um fazer político que não procura mascarar suas conexões com estes, mas que, ao contrário, revelam posições onde o amor, a autoestima e as dores são constituintes potentes de vivências. Partindo da compreensão da dimensão que os afetos e desafetos possuem no fazer antropológico, coloco em revisão minhas práticas e relações estabelecidas em campo. Estabelecer pesquisa junto a alguns grupos por si só nos mobilizam emocionalmente, seja por suas condições de vida em meio a contextos violentos, insalubres ou mesmo suas debilidades físicas, psíquicas. Ao dialogar com mulheres negras, em contexto de pesquisa, notei que as dimensões de dor e resiliência, solidão e amor, resistência e alegrias estavam a um só tempo enredadas nas narrativas de si, nas narrativas sobre o outro e nos modos de ler o mundo e fazer ativismo. A produção de feministas negras é permeada de reflexões acerca do sofrimento, e suas marcas se manifestam em dureza, problemas com autoestima e, por vezes, dificuldades em se relacionar afetivamente. A proposta é reanalisar minha inserção em campo, junto com as reflexões de mulheres negras e seus relatos de dor e sofrimento, através de uma perspectiva que privilegiaria o enredamento entre as gestões de Estado e as vivências cotidianas destas mulheres.
Relatos da luta: gênero, humilhação e ativismo em uma associação de familiares de presos
Autoria: Natália Bouças do Lago
Autoria: O work discute a atuação de uma associação de familiares e amigos de presos chamada Amparar. Localizada em São Paulo, a associação é coordenada por Railda Silva, cuja trajetória ativista teve início na privação de liberdade de seu filho na antiga Febem e, posteriormente, no sistema prisional. A etnografia se desenvolve nas atividades da associação e no acompanhamento das articulações mobilizadas por essas atividades. O work da Amparar se insere em um emaranhado institucional que inclui organizações não-governamentais e instituições públicas que produzem tanto um Estado violador quanto um Estado a quem se reivindica direitos e garantias. Se o discurso da associação aciona a prisão e a polícia como partes de um Estado violador, organizações estatais como a Defensoria Pública fazem parte de um Estado a quem se reivindica e se pressiona por encaminhamentos e denúncias. Estado é, aqui, uma categoria nativa que organiza e direciona as interlocuções produzidas por Railda e pela Amparar. As narrativas das familiares que se articulam por meio da associação falam sobre as situações impostas a quem lida com a prisão desde o lado de fora, atravessando-a, mas também contam sobre situações vivenciadas pelos maridos e filhos presos. A dimensão profundamente relacional do lugar ocupado por essas mulheres e seus relatos se inscreve na linguagem de gênero. Afinal, nos espaços que ocupam – tais como reuniões com defensores públicos, debates e mobilizações sobre prisões – elas são familiares (de presos): pessoas que não estão presas, mas que lidam com a instituição prisional e se movimentam através dela e de seus dispositivos – a espera nas filas, os procedimentos de entrada e saída das prisões, a emissão de documentos. Com efeito, ainda que gênero não seja sinônimo para mulheres, nesse contexto o lugar ocupado pelas familiares é eminentemente feminino. Por fim, a profusão de instituições com as quais a Amparar produz interlocução compõe o Estado que é denunciado e ao mesmo tempo receptor das narrativas. A Amparar e as familiares dão nome e corpo às denúncias, e identificam violências e humilhações perpetradas não só em seus corpos, mas no de seus maridos e filhos privados de liberdade. Gênero e sexualidade são linguagens que permitem a identificação dessas violações e que contribuem para que as mulheres produzam um lugar de mediadoras e relatoras de eventos ocorridos no interior das prisões.
Sobre os dilemas de contar dores, vulnerabilidades e invisibilidades: apontamentos etnográficos sobre violências em favelas do Rio de Janeiro.
Autoria: Carolina Parreiras Silva
Autoria: O objetivo deste paper é refletir sobre alguns dilemas levantados por pesquisas que trabalham com violência, especialmente quando elas aparecem marcadas por gênero, sexualidade, classe social e geração. Neste caso específico, estou interessada em discutir, a partir de algumas cenas etnográficas de minha pesquisa de pós-doutorado, os limites que se apresentam ao se falar de violências sexuais e de gênero contra adolescentes, moradores/as de favelas da cidade do Rio de Janeiro. Ainda que minha questão central de pesquisa sejam violências sexuais, a partir da pesquisa de campo, ficou claro que seria impossível não alargar o campo de visão em relação às violências. Assim, a proposta deste artigo é de âmbito ético e metodológico, já que toma como base os desafios encontrados na feitura e escrita da etnografia. Parto, então, de algumas perguntas: na medida em que se trata de contextos marcados pela sobreposição de violências, como capturar e expressar experiências invisíveis, escondidas e que acessam dores e memórias, tornando-as inteligíveis no texto etnográfico? Como dar sentido antropológico aos silêncios e a outras linguagens utilizadas pelos sujeitos desta pesquisa, a fim de entender o caráter cotidiano e ordinário (Das, 2008) destas violências? Como expressar – para além do vocabulário do trauma (Fassin, 2009) – vivências de sofrimento, horrores, nas quais toda palavra parece insuficiente? Neste sentido, tomando como ponto de partida minha própria inserção em campo, busco discutir questões como vulnerabilidade, invisibilidade, metodologia de pesquisa e a própria construção do texto etnográfico, especialmente em momentos que parecem inenarráveis e nos quais meus próprios sentimentos se embaralham aos de meus/minhas colaborares/as.
Tradução e Crença: Abordagem antropológica para saúde mental na universidade
Autoria: Rafael de Mesquita Ferreira Freitas
Autoria: A partir da presente pesquisa, reflito acerca das possibilidades de conhecer e transmitir, por meio de narrativas, a experiência de estudantes universitários que buscam grupos terapêuticos como um suporte para, dentre outras razões, a sua manutenção na faculdade. É a partir de suas narrativas e da construção de um espaço social que encontro subsídios para refletir acerca dos diversos significados de ser estudante na universidade. Tais narrativas são nós temáticos, no sentido que trazem consigo uma pluralidade de temas, ou linhas deste emaranhado (tais como família, work ou sexualidade), que, por questão de interesse de pesquisa, busco focar entre queixas e suportes ao bem-estar na academia. Os dois eixos temáticos que abordo aqui são as questões de crença e de tradução. Crença no sentido de refletir acerca do estatuto fornecido dentro da abordagem antropológica para narrativas dos estudantes adoecidos, não como um efeito simbólico nem são fabulações de um sofrimento falso, meras crenças, seja por falta de conexão com previsões realistas ou com materialidades, mas como constituintes de um saber e de uma reflexão acerca da academia. E, o outro eixo, tradução, pois um dos maiores desafios postos por esta pesquisa é o de como traduzir uma dor que não possui, como fonte imediata, uma comprovação material ou quantificável. Tomo tal desafio de comunicação como um ponto central por dois motivos. Primeiro, porque essa é uma questão relevantes para as pessoas com quem work. Para elas é necessário comunicar suas dificuldades, e fazer com que esta comunicação seja efetiva, para que suas limitações possam ser devidamente acolhidas e trabalhadas. O segundo ponto, é um outro foco de mediação. Estou, nesta pesquisa, em uma posição intermediária entre estudantes, o qual também sou, e academia, para onde volto minha fala. Logo, a própria situação etnográfica desta pesquisa é também um posicionamento estratégico destes sujeitos, como forma de alcançar outras instâncias de um debate por permanência na universidade. a proposta é de uma antropologia que modifique as próprias categorias de conhecimento do pesquisador. Escrevo a partir da universidade para alterar o que significa o que é ser estudante universitário, tanto para a instituição, como para os próprios estudantes. Pretendo, através da análise de material etnográfico, enfatizar o choque de noções do que significa ser universitário e quais suas representações hegemônicas. Desta forma, tornar mais presente no debate outras possibilidades de ser acadêmico que existem dentro deste ambiente, mas que permanecem como que clandestinas, existindo dentro da academia, mas não tendo reconhecimento nas narrativas e símbolos legitimados.
Vulnerabilidade e fazer etnográfico
Autoria: Adriana dos Santos Fernandes
Autoria: A observação de Veena Das de pensar a doença - entre os moradores de periferias de Nova Delhi (e de outras periferias) - não como um fato extraordinário, mas em continuidade com a vida, me parece uma pista instigante para discutir alguns dilemas que acompanham campos perpassados por condições materiais de precariedade e por jogos de reconhecimento/invisibilidade em torno da vulnerabilidade. Ser reconhecido como um sujeito vulnerável inclui, a maior parte das vezes, tornar-se (e permanecer) um sujeito adoecido e/ou medicalizado. Tal sujeito, que ganhou destaque, a partir dos anos 90, na chamada era do humanitarismo, continua objeto privilegiado de compaixão por parte das agências internacionais responsáveis por políticas protetivas e de direitos humanos. No campo dos abrigos, acessar determinadas políticas, assim como ser um usuário (do abrigo) portador de problemas mentais ou de alguma doença crônica, possibilita, de forma positiva e paradoxalmente, reabitar sua queda/sofrimento. Para o corpo do/a pesquisador/a em campo e a transmissão dessa experiência (a etnografia), a consideração dos estados variados de vulnerabilidade coloca questões mais “envenenadas” (seguindo o léxico de Das). A suspeita de que o interlocutor usuário dos abrigos está nos “engambelando”/“enrolando”, mesmo que entenda esse gesto como uma performance ligada a vulnerabilidade e seus jogos, não é algo restrito ao campo dos abrigos, mas parece mais constitutiva de campos de pesquisa informados por condições de precariedade. Esses estados de desconfiança, por sua vez, não deixam de fazer parte do processo de construção de confiança que desponta via cotidiano, assim, pagar um lanche, uma conta ou um remédio, emprestar um dinheiro, situações que se apresentam, em geral, em regime de urgência, não são exatamente situações de fácil decisão e sem consequências. Como sabemos, inúmeros pesquisadores já ressaltaram que o encontro entre etnógrafo/interlocutores/“informantes” encena relações de poder referentes a desigualdades e conflitos das sociedades e grupos onde se inserem. Perseguindo algumas passagens da pesquisa em abrigos públicos no Rio de Janeiro desejo discutir como a vulnerabilidade - enquanto um conjunto de enunciados, práticas e signos - tem sido manejada por camadas populares precarizadas como forma de acessar determinadas políticas, e o que isso coloca ao fazer etnográfico.
“Meu filho tomou um tiro!”: O extermínio da população favelada e as topografias do horror
Autoria: Maria Aline Sabino Nascimento
Autoria: O presente work é fruto de uma experiência etnográfica realizada em uma competição poética de rua que ocorre em uma favela da cidade do Rio de Janeiro. Em meu texto, elaboro minha discussão a partir do relato de Joana, mãe, cantora e poeta, que em sua primeira participação na batalha poética descreve a cena testemunhada por ela do assassinato de seu vizinho na calçada de sua casa por um policial do BOPE. Discutindo a respeito de assassinatos de moradores das favelas do Rio de Janeiro, viso compreender as formações das engrenagens governamentais de uma política de gestão de mortes. Engrenagens que giram nas margens, lugares onde o governo de morte se (re)constrói e é reforçado cotidianamente. Meu objetivo neste texto é mostrar que esses assassinatos são o combustível da governamentalidade e responsáveis pelo refazimento do Estado. O debate feito a respeito de vidas faveladas exterminadas pelo Estado não pode ser isento de uma discussão séria de raça e classe, traços inscritos nos corpos dessas vítimas. Uma esterilização moderna, portanto. Aqueles que ainda continuam vivos precisam ser exterminados, pois representam uma ameaça às vidas de uma população específica, que também tem em seus corpos inscrições corporais de raça e classe. Dessa maneira, tendo como central para mim as elaborações teóricas de Angela Davis (2016), entendo o extermínio das populações faveladas como uma espécie de “esterilização moderna”. Segundo ela, “a ideologia transforma-se para encontrar novas condições históricas” (Ibid., p. 134). Partindo dessa perspectiva, compreendo que, se no passado mulheres negras eram forçadas a passarem por um processo de esterilização, no presente esse mesmo processo existe, mas de outra forma. Quem pode viver e quem pode morrer é um questionamento que atravessa todo o meu texto. Questionamento feito por autores como Mbembe, Butler, Davis, Farias, Vianna e tantos outros. Se é verdade que o tempo é uma agência ativa capaz de curar e destruir (Das, 1999) como acontece o refazimento das vidas daqueles que ficaram e lutam para que pelo menos o assassinato de seus filhos seja reconhecido como tal, já que a vida dele foi questionada como vida tantas vezes? O que cabe e o que não cabe nos enquadramentos que nós fazemos em relação às narrativas ouvidas por nós pesquisadores? Joana buscou na poesia e na fala compartilhar sua dor como uma forma de se refazer, são nas fronteiras das topografias do horror que a luta por sobrevivência só é possível por meio de “tomadas de ar”. Recitar poesia, portanto, foi uma forma que ela encontrou de reabitar a vida, o cotidiano e o espaço.
A resiliência como possibilidade interpretativa para situações de angústia e sofrimento em contextos de ameaça de remoção de moradias
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Autoria: Minha proposta é pensar as potencialidades e os limites da noção de resiliência enquanto possibilidade interpretativa sobre o sofrimento e seus efeitos. Pesquisando a partir das narrativas de luta contra as remoções de moradia em diferentes cidades brasileiras durante o período que antecedeu a realização dos “megaeventos” me aproximei da noção de resiliência como uma possibilidade ética de reflexão. Tal como se apresentou em minha etnografia, a ameaça de perda da casa foi “gatilho” para várias outras narrativas de sofrimento, que articulavam relatos de diferentes deslocamentos forçados vividos pelas narradoras ou por pessoas próximas; lesões por atendimentos de saúde precarizados; relatos de mortes e invasões de moradia em operações policiais; obras de urbanização inconclusas. Por intermédio deste evento crítico – a ameaça de remoção – a vida relatada apresentou-se fragmentada em “épocas brabas”, difíceis, mas que evocaram sempre um sentido de superação. Compreendi esses relatos, todos eles atravessados pela minha presença e pela minha escuta, como narrativas de resiliência. Que organizavam a legitimidade da moradia: demarcando a casa como possibilidade de enraizamento, como crucial na centralização de afetos, trajetórias e projetos de vida. E onde diferentes modalidades de sofrimento tornavam-se sacrifícios; que nominados, eram parte da dinâmica de uma luta pelo reconhecimento. Concordamos que a noção de resiliência pode assumir um caráter “conservador e apolítico” (MacKinnon e Derickson 2013) quando apropriada por agências estatais e pelo universo corporativo, já que colocam sobre os indivíduos, comunidades e lugares, o ônus de se tornarem mais adaptáveis. Seguimos, todavia, tanto uma perspectiva que dialoga com as proposições de Veena Das, cuja ênfase no fragmento auxilia na compreensão de como determinados cotidianos são habitados; quanto de Michel Lemay e Boris Cyrulnik que enfatizam que ser resiliente não significa sair ileso, não significa ser invulnerável, mas tornar-se capaz de acomodar vestígios. Compreendendo que os sofrimentos narrados são efeitos de uma necrogovernança que produz na perda, na ameaça, na dor e na angústia as condições em que a vida é vivida para uma população - majoritariamente negra - que habita as favelas; minha proposta é pensar coletivamente a eficácia da resiliência enquanto enquadramento para o processo de elaboração dessas dores. Também gostaria de refletir se esta escolha interpretativa não narraria paralelamente uma tentativa de transposição dos sentimentos compartilhados em situações de interlocução; como forma de acomodação das experiências de transformação e escuta diante da dor do Outro; diante do esforço das narradoras em acomodar perdas e sofrimentos em um cotidiano de pequenos sacrifícios.