Cinque Terre
GT 010. Antropologia da Economia
Arlei Sander Damo (UFRGS) - Coordenador/a Eugênia de Souza Mello Guimarães Motta (Instituto de Estudos Sociais e Políticos) - Coordenador/a, Gustavo Gomes Onto (UFRJ) - Debatedor/a, Lúcia Helena Alves Müller (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande dos Sul) - Debatedor/a
Desde o nascimento da nossa disciplina os intercâmbios de objetos e riquezas, mediados ou não pelo dinheiro, as formas de valoração e de provimento das condições materiais de continuidade da vida foram objeto de descrição e interpretação a partir dos modos de vida dos “outros”. As teorias econômicas já tinham grande importância nas sociedades a partir das quais surgiu a antropologia e, nas últimas décadas, se tornaram uma verdadeira linguagem global. A importância dos especialistas, sejam acadêmicos ou gestores governamentais, nunca foi tão grande, tendo esses um papel preeminente no desenho de políticas de larga escala. Economia, portanto, concerne a uma multiplicidade de objetos, temas e possibilidades de abordagem que implicam, sempre, o questionamento sobre a própria definição sobre o que seja “a economia” ou que caracterize algo – prática, teoria – como “econômico”. A Antropologia da Economia vem ganhando novo fôlego, com a organização de diversos eventos e publicações acadêmicos voltados a essa área de estudos. O objetivo do GT é propiciar um espaço dedicado a colocar em diálogo trabalhos que possibilitem explorar a multiplicidade de sentidos da economia, as diversas escalas de observação que ela permite e provoca e as ambiguidades e misturas que colocam em questão as fronteiras e limites do econômico, como a relação com as práticas familiares, a intimidade, a religião, o consumo, a dádiva, a política, as moralidades e assim por diante.
Resumos submetidos
"No fio do bigode": relações de crédito entre agricultores familiares em São Lourenço, Nova Friburgo - RJ.
Autoria: Natália Barroso Brandão
Autoria: O objetivo do presente artigo é realizar uma discussão a respeito das diferentes racionalidades e moralidades econômicas que informam as práticas econômicas - principalmente aquelas envolvendo relações de crédito - estabelecidas entre agricultores familiares na comunidade de São Lourenço, no distrito de Campo do Coelho, em Nova Friburgo - RJ. Entre abril de 2016 e janeiro de 2017 residi na comunidade com o intuito de desenvolver a pesquisa que resultou em minha dissertação de mestrado, intitulada "Às vezes a gente precisa do papel" - Uma análise das relações contratuais na comunidade de São Lourenço em Nova Friburgo - RJ". Neste artigo, pretendo focalizar as transações econômicas (principalmente a compra e venda no "fiado" e os empréstimos) realizadas entre os próprios agricultores, assim como os diferentes circuitos de trocas acionados nas relações cotidianas que permitem que estes se insiram no "mercado". Tais relações de crédito, realizadas pelos agentes sem nenhuma formalização oficial ou garantia legal, são recorrentes e substituem em muitas situações os empréstimos institucionais (como o caso do financiamento ofertado pelo PRONAF), uma vez que são orientados por valores e moralidades diferentes daqueles promovidos pelo direito positivo e pela racionalidade econômica clássica ou pelo "mercado". A análise destas relações, serve então de subsídio para refletir a respeito dos valores e moralidades mobilizados nestas relações, determinando o modo como estas são estabelecidas e compreendidas pelos interlocutores. Assim, busco desenvolver uma discussão a respeito das duas moralidades vigentes ao mesmo tempo nestas relações: de um lado, a moralidade representada como local, que diz repeito a agentes e situações específicas, relacionada necessariamente às pessoas envolvidas na relação e baseada na "confiança" enquanto valor; e de outro, a moralidade relacionada a lógica do direito positivo e do sistema econômico, que diz respeito a promoção dos princípios igualitários de uma ideologia individualista, baseada em regras determinadas e impessoais.Pretendo também analisar como relações aparentemente não orientadas por valores econômicos permitem que estes agricultores figurem no “mercado”, pensando como estes mobilizam estratégias que os permitem tornar-se competitivos,e em como neste contexto as relações econômicas estão necessariamente "embebidas" (POLANYI, 1971) em outras relações sociais.
A financeirização das classes populares brasileiras/ Uma etnografia das práticas financeiras nas margens urbanas de Vitoria (ES)
Autoria: Timothée Narring
Autoria: A partir de uma etnografia das praticas financeiras na favela São Benedito, essa pesquisa tem como objetivo analisar os efeitos da incorporação das « pessoas de baixa renda » ao sistema financeiro brasileiro. A partir de uma longa imersão ao campo de pesquisa, analiso como as margens urbanas se relacionam com o conceito de dívida e assumem diferentes obrigações monetárias e morais, interiores ou exteriores ao bairro. Depois de um work de mestrado focado sobre as apropriações territoriais do « Banco Bem » no São Benedito (2016), decidi repensar a ação desse banco comunitário no contexto mais geral de financeirização das classes populares brasileiras. A centralidade do endividamento com bancos, financeiras e supermercados, vetor de inclusão à sociedade de consumo, representa uma mudança essencial. No entanto, existem poucos works que articulam esses processos macroeconômico e politico com uma abordagem etnográfica. A partir do contexto apresentado, proponho pensar a financeirização no Brasil através de duas dimensões: a) como uma construção política (através das políticas sociais) de uma relação nova entre pessoas de baixa renda e instituições financeiras, que se intensificou com a estimulação do crédito e se concretizou principalmente nas praticas de consumo. b) como uma situação presente nas classes populares, onde as praticas financeiras ocupam uma parte central e crescente do tempo e da renda e se tornam necessárias à reprodução das condições de vida. Nos primeiros campos de pesquisa (2016, 2018), comecei acompanhar as trajetórias financeiras de 20 famílias, tomando a metodologia das histórias de vida como referência; além das observações experimentadas da vida cotidiana e de eventos centrais da vida do bairro. Dessas primeiras experiências surgem duas reflexões de análise. Por um lado, as financeiras ocupam um lugar central nas praticas de crédito dos moradores de São Benedito. Já que a maioria da população não tem acesso a crédito nos bancos convencionais, elas usam os serviços das financeiras que propõem condições mais flexíveis mas têm um custo muito alto. Por outro lado, a renegociação ou mesmo o não pagamento da dívida acabam sendo saídas possíveis para as classes populares. Dessa maneira, no meu próximo campo (setembro 2018-janeiro2019) tenho como objetivo prosseguir essas questões. A reunião de antropologia brasileira será justamente uma oportunidade para discutir sobre as observações do campo. Permitira também me familiarizar com a antropologia econômica brasileira que eu acessei através dos works do grupo « Economia e Cultura » do Museu Nacional. E ainda com respeito a bibliografia, imagino combinar essa contribuição com a socioeconomia francesa inspirada por Karl Polanyi.
Afeto e dinheiro no circo de rua
Autoria: Juliana Oliveira Silva
Autoria: Ao longo das estradas, nas ruas, semáforos e casas, as/os malabaristas constroem relações de proximidades e afastamentos. A experiência compartilhada, seja a de estar “na correria” ou na circulação, estimula o florescimento de cuidados e solidariedades uns com os outros. Dessas relações, algumas se desdobram em formatos familiares consanguíneos ou não. A moralidade da pessoa malabarista, pautada na ética da partilha e da coletividade, reflete-se na formação de famílias de consideração entre pessoas que, embora não sejam parentes de sangue, consideram-se como tais, fazem circo e moram juntas. Ao mesmo tempo, a moralidade dessas pessoas tece afastamentos em relação a posturas de arrogância, ganância e vaidade. Tais ambivalências manifestam-se também nas relações que as/os malabaristas têm com o dinheiro. Nesse universo, o dinheiro é adjetivado, revestido de significados morais e, através do estabelecimento de objetivos e metas, pode ser ‘purificado’: em situações específicas, o fazer dinheiro é aceitável, noutras não. Em Alter do Chão, a sazonalidade norteia as dinâmicas de circulação e fixação das/dos malabaristas que, em relação à alta e à baixa temporada, passam a fazer viagens de work com durações mais curtas, e o objetivo definido de fazer dinheiro. O circo de rua, nesse cenário, funciona como ferramenta de circulação e fixação: para viajar, mas também para construir casas. Pessoas que estavam viajando, circulando pelo país, veem em Alter do Chão um lugar para morar, muitas vezes, atraídos pela ideia de “morar no mato”, ou ainda, “morar na Amazônia”. Neste artigo, interessa-me pensar a relação da pessoa malabarista com as dinâmicas de estabilidade e movimento na construção de casas e famílias e, a partir disso, os sentidos que o dinheiro adquire nesse universo. Partirei da experiência de circulação para compreender (i) a formação de famílias consanguíneas e de consideração entre pessoas que se reconhecem em situações compartilhadas; (ii) a busca por autonomia e liberdade, que é atravessada pelo aprendizado e desempenho de múltiplas atividades e pela dimensão constante do planejamento, organização e estabelecimento de metas; (iii) o fazer dinheiro nos semáforos, que implica a circulação de outros elementos além do dinheiro, como dons e energia, bem como a posição ambivalente que ele ocupa nesse universo; (iv) a incidência da sazonalidade de Alter do Chão, sob a forma de alta e baixa temporada, no fazer circo, com ênfase na díade circular-fixar.
Afro-Empreendedorismo Brasil x EUA – Apontamentos sobre o contexto brasileiro
Autoria: Filipe Romão Juliano
Autoria: O projeto Afro-Empreendedorismo Brasil x EUA busca compreender os sentidos das atividades colocadas em prática por grupos negros brasileiros e afro-americanos em prol do desenvolvimento econômico de suas comunidades. O que significa organizar-se em prol do desenvolvimento econômico individual e comunitário? Quais os sentidos construídos durante a organização de iniciativas que visam o acesso a riqueza socialmente produzida, espaços, bens de consumo, entre outros? O objeto aqui será compreender como negros brasileiros e norte-americanos constroem redes, espaços e momentos visando o seu próprio bem estar de acordo com moralidades e campos semânticos característicos. Este work toma as desigualdades raciais no Brasil e nos EUA enquanto um aspecto econômico engendrado pelo capitalismo e investiga a extensão e a importância das mobilizações negras de ambos os países na luta pelo desenvolvimento social e econômico. Mais que uma forma de organização restrita à economia, temos o capitalismo como um regime particular de interação entre pessoas, coisas e instituições, uma cosmologia ou um modelo cultural completo (Sahlins, 1979). Desta forma, estabelece-se vínculos, semelhanças e distanciamentos entre a mobilização negra brasileira e a norte-americana através de uma abordagem comparativa e relacional. O primeiro momento da realização deste estudo é a etnografia junto às organizações afro-brasileiras, como a Reafro (Rede Brasil Afro empreendedor) e tem levantado pontos importantes à reflexão. Nesta apresentação pretende-se analisar mais detidamente os primeiros resultados do campo, tais como o que significa “empreender” para as lideranças negras envolvidas na “militância econômica”? O que faz de um/a militante negro/a, antirracista, um/a empreendedor/a ou um homem/mulher de negócios? O que significa o “black money”? O que distingue o capitalismo do “capitalismo negro”? É possível ser um “capitalista negro”? O que é necessário saber para “empreender de acordo com os marcos civilizatórios afro-brasileiros”? A que deve servir o afro-empreendedorismo: ao bem estar individual, ou à “autonomia política negra”? Estas tensões e questionamentos serão exploradas nesta apresentação a fim de basear pontos que possibilitem o avanço da pesquisa.
Altruísmo Eficaz: novas formas de fazer filantropia e a cultura da doação no Brasil
Autoria: Patricia Kunrath Silva
Autoria: Fome, riqueza e moralidade são temas importantes de estudo nas ciências sociais e também título de um livro publicado nos anos 70 de autoria do filósofo Peter Singer. Na esteira desse work, Peter Singer viria a se tornar, cerca de quatro décadas mais tarde, o “pai do altruísmo eficaz”. Considerado um filósofo utilitarista, Singer defende uma ética aplicada que deveria transformar as relações da sociedade civil. Com centros consolidados em universidades norte-americanas como Harvard (http://www.harvardea.org) e Stanford (http://web.stanford.edu/group/ea/), os promotores do altruísmo eficaz têm se organizado no Brasil nos últimos anos. Tendo pesquisado o universo mais amplo da filantropia no Brasil e nos Estados Unidos e a cultura da doação nesses países em minha tese de doutorado, busco agora me aprofundar nesta vertente filantrópica que se apresenta muito recente – Singer fez uma fala de lançamento do programa de altruísmo eficaz em Harvard em 2015. A economista e estudante de Gestão Pública em Harvard Isabel Opice publicou no Estadão em maio de 2018 sobre seu primeiro contato com o assunto na instituição: “O Altruísmo Eficaz prega que as decisões sobre para quem doar devam ser racionais, buscando maximizar o impacto do dinheiro investido”. (https://politica.estadao.com.br/blogs/blog-do-mlg/minha-primeira-experiencia-com-o-altruismo-eficaz/). O que é esta filosofia que também se autodenomina como um movimento social? Como encontra entrada no Brasil e quem são seus promotores? Essas são algumas das questões que esse work pretende elucidar. Com base em entrevistas em profundidade com promotores do altruísmo eficaz no Brasil e pesquisa bibliográfica sobre o tema, observa-se como novas formas de fazer filantropia emergem, disputam espaços e recursos e buscam modelar uma cultura da doação no país.
As equações "sociolistas" da casa e da vida em um "batey" cubano
Autoria: Carlos Gomes de Castro
Autoria: Diante do constante e quase irreversível decrescimento da economia açucareira, fruto de uma crise iniciada em fins dos anos 1980, o mundo do açúcar foi pouco a pouco deixando a cena cubana, como se oferecesse seu lugar ao turismo, que, de fato, tornou-se alvo de grandes investimentos financeiros e, não por coincidência, objeto analítico de várias áreas do conhecimento, inclusive da antropologia. Não noticiado, o açúcar foi praticamente esquecido e, por extensão, as próprias transformações advindas de sua ausência foram apagadas, o que fez com que as comunidades açucareiras, mais conhecidas como “bateyes”, se tornassem espécies de lugares “fantasmas” ou “zonas de silêncio”. Com dados de uma pesquisa etnográfica realizada entre 2012 e 2016 na província de Matanzas, Cuba, invisto em um reencontro com essa substância. No entanto, tal reaproximação é feita a partir de um “batey” cuja usina esteve “parada” por quase uma década. O açúcar aparece, por esse motivo, como um elemento de longa duração que, até mesmo na ausência, atua na conformação de uma paisagem caracterizada como “deteriorada” e “sem vida”, em que apenas sujeitos “escapados” (astutos) são capazes de engendrar meios e relações para “fazer a vida”. “Campesinos”, “trabalhadores do campo”, camelôs e diferentes tipos de “particulares” (autônomos legalizados ou não) fazem parte, entre outros, do extenso grupo de escapados que, ao lado de objetos e circuitos de aluguéis, põem em movimento uma intrincada economia “sociolista criolla”, isto é, não determinada pelo socialismo centralizado estatal, ainda que dele seja “socia” (parceira). Eles são, pois, o meu ponto de apoio para descrever as formulações e cálculos ordinários e subjetivos utilizados como forma de “acomodar” a dinâmica das casas e dos “negócios” no “batey” e, ao mesmo tempo, de impulsioná-la em uma direção de “progresso”, “desenvolvimento”. Minha descrição intenta encenar, por vezes sem a densidade merecida, importantes questões nativas sobre amizade, “família no estrangeiro”, uso e propriedade de “dólares”, circulação de pessoas e mercadorias, construção de objetos “criollos” e associação – todas fundamentais para a compreensão das especificidades da concepção e da prática político-econômica examinada. Visto à distância, talvez o “batey” pareça estagnado, enferrujado; todavia, com um olhar baseado na minúcia etnográfica, é possível observar nele a emergência de constantes pulsações e de modos de praticar e fazer, à maneira das pessoas, o próprio socialismo, convertido ou criolizado – e não simplesmente copiado ou falsificado – em um sistema “sociolista”.
Dedos pelando
Autoria: Arthur de Andrade
Autoria: Em um dia comum de work de Brasília na Plataforma Rodoviária do Plano Piloto passam dezenas de milhares de pessoas diariamente. Transeuntes vem e vão entre os três pisos da estação na busca dos mais diversos destinos, serviços e até mesmo work. O que despertou o interesse para a elaboração do presente work é o desdobramento da análise de uma “situação” inusitada: em uma região de fluxo intenso de pessoas, uma senhora enfurecida arremessa um aparelho celular no chão. Passa a queixar-se abertamente para os transeuntes sobre o golpe que acabará acontecer. O ocorrido se resumia na compra de um aparelho de um rapaz. Quando a mesma recebeu o produto notará que se tratava de um aparelho bloqueado, pois possivelmente era oriundo de algum assalto. Me coloquei no auxílio do caso da senhora a levando a um posto Policia do local, os agentes que trabalhavam no local, nos esclareceu uma complexa relação de comerciantes e assaltantes no empreendimento de um comercio de mercadorias “quentes” (roubadas), onde estabelecimentos formais como assistências técnicas, assaltantes e comerciantes empreendiam uma complexa relação para obter, desbloquear e revender aparelhos de procedência “quente”, o ocorrido, segundo os policias era algo muito recorrente. Este drama, serviu-me de ponta é inicial para o exercício de uma etnografia, onde volto-me à avaliar transversalidades com a qual modalidades formais, ilegais e múltiplos ilegalismos se misturam para que o empreendimento da venda de “mercadorias quentes” funcione na rodoviária. Para dar conta da compreensão deste fenômeno, lanço mão de um aparato metodológico diversificado, para não apenas compreender como objetos e pessoas, saltam de condições hora formais, hora ilícitas, no trânsito até serem tratadas como “mercadorias quentes”. O work lança mão de três caminhos metodológicos principais para dar conta do que se propõe a analisar: “analise de empreendimentos que atravessam “ilegalismos”, “analise situacional”, e “analise do fluxo de pessoa e de coisas”. De início me coloco em diálogo com works de Vera Silva Talles e Daniel Veloso Hirata para sondar a dinâmica de mudança que levam pessoas e mercadorias “saltarem” entre condições de “ilegalismos”. Para o empreendimento da reflexão na etnografia lanço mão de desenvolver “analise situacionai” sobe a influência de modelos propostos por Max Glukman e Haap Van Velsen e Michel Agier, para aproximar o leitor da melhor maneira possível da apresentação dos dados coletados na pesquisa. E para finalizar compro inspiradoras metodologias de autores como Andréa Lobo, Daniel Miller e Carikyn Nordtrom para sondar como pessoas, valores e objetos “fluem” no funcionamento desse “mercado ilegal”.
Desenvolvimento sustentável, moralidades empresariais e imagens “verdes” nos dispositivos imagéticos das empresas de mineração
Autoria: Maria Gabriela Scotto
Autoria: A noção de "desenvolvimento sustentável" longe de ser unívoca e ter um significado consensual, alude a campos conceituais e políticos diversos que recobrem representações múltiplas, as quais variam segundo os atores, estratégias e perspectivas em jogo. No caso da sua apropriação discursiva por grandes empresas atuantes no setor de mineração, o desenvolvimento sustentável é concebido - de forma um tanto imprecisa e genérica - como “um marco de referência útil para guiar o setor mineral”. Marco referencial que articula, discursiva e simbolicamente, a atividade econômica da mineração (baseada na extração de recursos naturais não renováveis e finitos), a preservação ambiental, a preocupações sociais (sob a forma de "responsabilidade social") e os chamados "sistemas de governança". O objetivo deste work consiste em analisar – numa perspectiva antropológica - os dispositivos imagéticos produzidos por algumas das principais empresas de mineração atuantes no Brasil. Destinados a um público amplo e diverso, a maioria desse material visual constrói, sob a noção de Desenvolvimento Sustentável, narrações sobre as contribuições da mineração para a sociedade, para o Planeta, e para as comunidades locais onde a empresa atua. Ao mesmo tempo em que se apresentam perante a sociedade como sujeitos econômicos e morais, os dispositivos imagéticos desempenham um papel ativo na construção de imagens e representações sobre a “natureza” e o ”meio ambiente”.
Empreendedorismo de palco: A linguagem da liberdade no processo de self-making do sujeito empreendedor.
Autoria: Louise Scoz Pasteur de Faria
Autoria: Empreendedorismo de palco é um gênero brasileiro de literatura empresarial de caráter motivacional que mescla preocupações mundanas do cotidiano do empreendedorismo com um forte desejo por transcendência espiritual. São conselhos, dicas e expressões de efeito pouco atreladas a situações práticas, mas com forte carga sentimental e que fazem alusão ao infinito potencial de ação e imaginação que sujeitos, engajados em se tornarem empreendedores, deveriam acessar para “tornarem seus sonhos realidade”. Hoje, o gênero faz parte de uma industria que mobiliza composto formado por setores do entretenimento, mídia e mercado editorial voltada para comercializar palestras, livros, vivências corporativas e todo tipo de conteúdo motivacional que tem como objetivo fomentar o comportamento empreendedor junto a um público leigo no Brasil. O fenômeno do empreendedorismo de palco pode ser considerado como parte de um movimento mais amplo de fusão de lógicas, técnicas e práticas de cunho espiritual no cotidiano profissional corporativo da operação de novos negócios que passou a atrair a atenção de pesquisadores como Carla Freeman (2014), Paul Heelas (2006; 2008), Daniel Fridman (2017) e Daromir Rudnyckyj (2010). Nessa comunicação, busco pensar o empreendedorismo de palco como parte de um processo de self-making que envolve a incorporação de uma visão de mundo fortemente fundamentada da idéia de liberdade e de unbounded self a partir das reflexões de minha tese (FARIA 2018), fruto de um work de campo etnográfico entre os anos de 2014 e 2017, no Brasil e no Reino Unido com jovens empreendedores e suas redes de investidores, consultores e experts ao longo do processo de concepção, estruturação e operação de suas empresas.
Entre gramática moral e tecnologia política: a habitação “econômica” como solução à questão social (1880-1942)
Autoria: Thomas Jacques Cortado
Autoria: Frente à falta de moradias higiênicas e estéticas para hospedar o proletariado da cidade, as elites do Rio de Janeiro, a partir dos anos 1880, imaginaram a solução da habitação econômica: governo e empresários precisavam estabelecer um padrão de casa individual, isolada no meio do lote, que qualquer família proletária pudesse adquirir. Essa problematização econômica da habitação popular exerceu uma influência decisiva sobre as políticas que a municipalidade adotou a partir dos anos trinta, com a criação de incentivos para a autoconstrução e o loteamento do subúrbio e da Zona Rural. Com base nas ações e nos discursos daqueles que se preocuparam com a questão da habitação popular, assim como nas suas trajetórias, pretendo fazer uma “genealogia” (Foucault) dessa problematização, resgatando as relações de saber e poder envolvidas nessa forma de governar a cidade, explicitando de quais outras configurações de saberes e poderes ela se distinguiu, identificando os possíveis conflitos que a perpassaram. A minha hipótese é que a habitação econômica fica na intersecção de duas “estratégias” diferentes de governo, que também remetem a dois significados diferentes, embora complementares, da economia: uma que visa a racionalizar a produção do espaço urbano, submetendo a construção em geral a um princípio de otimização, e outra a moralizar o proletariado, modelando seus comportamentos de acordo com os ideais normativos das elites. Ou seja, a genealogia da habitação econômica obriga a pensar, por um lado, a centralidade da economia na elaboração das “tecnologias políticas” modernas (muito antes da revolução dita “neoliberal”), e, por outro, a economia enquanto “grandeza moral” (Thévenot, Boltanski), princípio de uma solução “justa” à questão social.
Fazer festa é uma guerra. Reputação, gratidão e dívida em festas de casamento
Autoria: Michele Escoura Bueno
Autoria: Em 2015 o mercado especializado em festas de casamento faturou cerca de R$ 17 bilhões no Brasil. Desde aquele ano, esse doutorado teve por objetivo compreender as relações mobilizadas no processo de organização desses eventos entre a periferia e o centro de São Paulo e Belém. Para a construção da etnografia, o material de análise foi produzido em work de campo aliando observação participante em lojas de vestidos de noiva a entrevistas em profundidade. No paper, proponho discutir a delicada imbricação entre dinheiro, bens e afeto na constituição de relações e reputações a partir das festas de casamento. Nas dinâmicas de produção do valor da festa, do peso afetivo impresso no convite e nas expectativas de retribuições, busco levantar questões sobre como as relações de aliança não excluem dinâmicas de poder e hierarquia. Fosse a família de um herdeiro varejista de Belém pagando R$ 300 mil ou um cobrador de ônibus da zona leste de São Paulo juntando R$ 20 mil, uma festa de casamento é sempre cara para quem a oferece. Oferecer um bom evento aos convidados depende de um esforço excepcional, um empenho de todos seus anfitriões em uma nova rotina de negociações e sacrifícios econômicos. Para manter o orçamento sob controle, gerenciar a lista de convidados é sempre a tarefa que se torna a principal batalha. Na trincheira, primeiros os anfitriões disputam entre si o poder de mando sobre o evento e, depois, decidem quem merecerá ou não participar da festa planejada para ser única e inesquecível. Pelo outro lado, entrar para o seleto grupo de convidados é inegavelmente ter um reconhecimento público de afeto e consideração. É ser querido. Entretanto, é também aceitar uma dádiva que deverá ser retribuída. Presentes, presenças, apresentações pessoais, fotos, gentilezas e até engajamento digital se tornam elementos sob observação, controle e avaliação que, no limite, atestam o nível de comprometimento dos convidados não apenas com a festa, mas com os próprios anfitriões. Na dinâmica de trocas e manutenção de reputações entre anfitriões e convidados que precisam merecer seus convites, não é raro que relações deslizem de amizades a inimizades e, inclusive, sejam ali desmotivadas ou desfeitas. Um convidado é também sempre um inimigo potencial. Contra ele pode ser estabelecido um preço mínimo para presentes, restrições de vestuário e até mesmo a contratação de seguranças para inibir roubos na mesa de doces. Dentro dessa ambivalência da relação em que a dádiva inaugura uma dívida, o sacrifício e a generosidade se tornam armas de apaziguamento dos conflitos e mediação das relações de poder entre quem dá e quem recebe a festa – desde que, claro, não pareça ostentação. Aí a festa é guerra.
Hospitalidade, dádiva e comércio moderno: impasses e ambiguidades em campos da teoria antropológica
Autoria: Luciana Freire Murgel
Autoria: Uma das discussões mais importantes trazidas pelos estudos da Antropologia do Consumo é a relativização da lógica utilitária, desafiando a pretensão de uma racionalidade econômica que prega a separação da economia da sociedade. O objetivo desse artigo é apresentar parte dos resultados da pesquisa sobre o mercado de vinhos para minha tese de doutorado*, realizada a partir de uma etnografia em um comércio especializado da bebida, que destacam como a economia capitalista ocidental ainda sofre com falta de relativização, mesmo na disciplina antropológica, em relação aos preceitos do individualismo moderno. A partir do work de Gomes (2002) que me chamou atenção para a relação entre comércio e hospitalidade, o fazer etnográfico desse work levou-me à teoria da hospitalidade como chave interpretativa para as situações apresentadas na pesquisa de campo, com o objetivo de dar conta das especificidades do consumo de vinho de um grupo de pessoas das camadas médias altas do Rio de Janeiro. Nesse processo, entretanto, deparei-me com diferentes teóricos da hospitalidade que questionam a existência de uma “real” hospitalidade no comércio. Diante dos desacordos teóricos, que refletem diferentes interpretações dadas ao Ensaio sobre a Dádiva de Mauss (1974), proponho refletir as relações entre trocas econômicas e trocas de dádivas, a partir dos dados etnográficos. Ao mostrar que as trocas de dádivas é algo que compreende o próprio negócio do vinho, apresento como dádiva e as trocas comercias não são antônimas, revelando uma dificuldade na teoria antropológica de se considerar a dádiva e o consumo como “fatos sociais totais” numa realidade formada por crenças modernas em que o individualismo ideológico e a autonomia da economia de mercado são visões preponderantes. Retomo as propostas de Caillé (1998) e Godbout (1998) de pensar a dádiva como um paradigma metodológico alternativo ao individualismo e ao holismo, mas redireciono a visão desses autores para o mercado e consumo modernos, onde a ambiguidade da dádiva e a complexidade da relação entre indivíduo e sociedade se fazem mais evidentes. *Tese desenvolvida no PPGA da Universidade Federal Fluminense com financiamento da Capes. REFERÊNCIAS CAILLÉ, A. Nem holismo nem individualismo metodológicos: Marcel Mauss e o paradigma da dádiva. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 13, n. 38, 1998. GODBOUT, J. T. Introdução à dádiva. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 13, n. 38, 1998. GOMES, L. G. Comércio étnico em Belleville: memória, hospitalidade e conveniência. Estudos Históricos (Rio de Janeiro), RIO DE JANEIRO, v. 29, p. 187-207, 2002. MAUSS, M. Ensaio sobre a Dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/Edusp, 1974.
Mães e empreendedoras: sobre fluxos de trocas entre famílias e amigas (virtuais) gerando negócios em São Luís, Maranhão
Autoria: Rejane Valvano Corrêa da Silva
Autoria: As agentes sociais que venho estudando são mães e empreendedoras, donas de micro ou pequenas empresas, ou simplesmente donas de sua mão de obra, que vendem produtos e realizam diversas trocas entre si e a partir de dois grupos virtuais. Algumas mães, para além do desafio de manterem seus empregos enquanto aprendem a ser mães (a maioria é primípara), decidem aumentar sua renda com negócios (in)formais. São novas consumidoras que trocam informações sobre diferentes métodos de criação, objetos e serviços, pois diante da maternidade surgiram demandas como copos que não vazam, consultorias de sono, livros sobre criação com apego, brinquedos educativos, roupas e acessórios para suas crias. Junto com o puerpério, o luto da vida sem filhos e o aumento dos gastos, decidiram juntar o útil ao agradável: transformando esses desafios em negócios numa rede de solidariedade que mistura valores e práticas tipicamente capitalistas (no sentido de abrirem seus negócios e venderem produtos ou serviços) com redes de ajuda entre familiares e amigos (virtuais) que também realizam trocas conforme lógica da reciprocidade. Como essas mães conseguem ter seus negócios significando simultaneamente uma forma de se empregar e de possibilitar exercer a maternidade de perto? Essa pesquisa é um desdobramento de pesquisa anterior sobre microempreendedores em São Luís. Em maio de 2017 fui convidada a participar de um grupo do Whats´app cujo objetivo é empoderar mães através da ajuda entre si de informações no aplicativo citado. Meses depois participei de uma aula de natação para bebês onde conheci outras recém mães, a professora criou um grupo no mesmo aplicativo para divulgar e discutir acerca de estimulação ao desenvolvimento dos bebês. Dentre as várias mães que participam destes grupos, algumas são empreendedoras. Estas são o foco do estudo, embora também me interesse estudar esses ambientes virtuais como contextos nos quais acontecem muitas trocas a fim de identificar os diversos fluxos: informações e troca de afetos não são mediadas pelo dinheiro, mas comidas, fotografias, acessórios para os bebês, sim. Quando alguma de nós descobre que há uma mãe carente que está grávida ou que acabou de ter seu filho, são divulgados os dados e muitas cooperam com doações de objetos (fraldas, roupas) ou dinheiro em espécie. Assim, através de conversas informais, entrevistas semiestruturadas e participação em eventos (feiras de negócios, piqueniques e aulas), tive como objetivo: a) compreender as relações entre escolhas do que vendem e a maternidade; b) identificar o que o dinheiro (não) compra nessas relações; c) analisar até que ponto o lucro é um fim do negócio.
Mercado imobiliário no Minhocão de São Cristóvão: redes familiares e circuitos exclusivos de trocas
Autoria: Yasmin Alves Monteiro
Autoria: A questão do déficit habitacional ocupa papel central na discussão sobre o futuro das cidades brasileiras. O problema motivou-me a investigar diferentes respostas dadas pelo Estado brasileiro à questão e a focar em uma experiência singular: o Minhocão de São Cristóvão. Na contramão da produção de unidades habitacionais nas periferias distantes que realizavam o “sonho da casa própria”, o Pedregulho consistiu em um sofisticado empreendimento na área central da cidade do Rio de Janeiro, bairro de São Cristóvão, com o fim de atender à demanda por moradia próxima ao work através do aluguel de baixo custo de unidades de propriedade estatal. Sendo uma iniciativa relativamente isolada no campo da produção de habitações sociais, esta “utopia urbana” carioca, projetada segundo os princípios racionalistas que orientaram a arquitetura modernista, foi gerida pelo poder público ao longo das décadas de maneiras diversas, mas sempre com o horizonte da titulação de propriedade, conversão do conjunto em um condomínio privado e tombamento pelo IPHAN, o que gera reflexos diretos na configuração do mercado imobiliário local. A partir de pesquisa de caráter etnográfico e entrevistas semiestruturadas com moradores do conjunto realizadas nos anos de 2014 a 2015 e de 2018, identifico as posições dos diferentes atores envolvidos e os limites de uma análise orientada para as expectativas de mudança que se colocam no horizonte com a possibilidade de “condominalização” do conjunto, bem como descrevo a diversidade de discursos, sentimentos e representações dos moradores a respeito do local. Embora sejam proibidas, as práticas de “passar apartamentos” são recorrentes. Estes anuncios não são publicizados e circulam apenas entre pessoas que possuem vínculos de parentesco ou afinidade marcados pela confiança. Utilizando também dos dados etnográficos, work na construção de genealogias e descrevo de que maneira o mercado imobiliário funciona majoritariamente através destas redes de parentesco e afinidade presentes no local. Procuro fornecer caminhos alternativos para a pesquisa a partir da análise do mercado imobiliário local à luz dos works de Valladares, Mauss, Zelizer e Abramo e delinear relações entre o debate a nível institucional sobre titulação de propriedade, função social da moradia, conservação do patrimônio, formas de gestão local e os circuitos atuais por onde os moradores transacionam os imóveis. Procuro evidenciar os momentos do anuncio de uma oferta de venda ou aluguel, a negociação do preço e a efetivação da transação como parte de uma relação de trocas entre grupos familiares e de vizinhos que se estende pelo tempo e envolve o compartilhamento da intimidade, a confiança, o cuidado com as crianças e idosos, empréstimos materiais e transações monetárias.
O “dinheirinho patikula”: reflexões sobre a monetarização entre os Kalapalo do Alto Xingu
Autoria: Marina Pereira Novo
Autoria: A intenção desse texto é apresentar algumas reflexões sobre o acesso e os efeitos da intensificação da monetarização entre os Kalapalo de Aiha (povo de língua karib, da região do Alto Xingu). Assim como outros povos indígenas do Brasil, eles vêm passando por um processo de transformação rápido e intenso, relacionado ao desejo e ao acesso ao dinheiro e ao “mundo das mercadorias”. Ainda que esses recursos sejam provenientes de diversas fontes, as políticas de transferência de renda são, atualmente, a principal forma de acesso ao dinheiro das pessoas de Aiha. Os recursos dessas políticas possuem uma peculiaridade, se comprados aos demais “tipos de dinheiro” acessados pelos Kalapalo, pois compreendem um acesso “individual/familiar”, ou “patikula”, como dizem, em contraposição aos recursos coletivos – o dinheiro ou as coisas “da comunidade”, katutolo engü (“coisas de todos”), ou seja, verbas e produtos industrializados advindos de projetos, visitantes, pesquisadores e por meio das associações indígenas. Com base em dados etnográficos, pretendo discutir como, ao circularem no cotidiano da aldeia, esses recursos (seja o dinheiro ou os objetos com ele adquiridos) contribuem para a criação e manutenção de formas específicas de relações, sejam elas de consanguinidade, afinidade ou amizade. Por um lado, a disponibilidade dos benefícios sociais permite que as pessoas supram seus desejos pelos objetos industrializados, ou pela também desejada escolarização e, ao mesmo tempo, permaneçam morando nas aldeias, sem precisar morar fora da aldeia. Por outro lado, seu acesso (que inclui a necessidade de cadastramento, atualização cadastral e saque dos valores) implica na permanência por tempos cada vez mais prolongados na cidade. Esse trânsito mais frequente, por sua vez, gera efeitos muitas vezes não previstos e nem sempre bem avaliados, ao fazer com que as pessoas se distanciem das tarefas domésticas e também de seus parentes. Adicionalmente, a satisfação dos desejos pelas mercadorias e pelo “mundo do branco” tem sido acompanhada por um aumento expressivo do que é desejável, aumentando também a necessidade dos recursos e, consequentemente, a frequência com que acabam se deslocando até as cidades. Um ciclo vicioso que parece não mostrar saídas: para a (re)produção do parentesco é cada vez mais necessária a circulação de mercadorias que, para serem adquiridas, exigem a imposição de fraturas (que podem ser muito breves, mas também muito sérias) nas redes de parentesco.
Olhe esse pirarucu belíssimo: classificação, gosto e distinção na circulação do pirarucu salgado na feira da 25 de Setembro em Belém/PA
Autoria: José Maria Ferreira Costa Júnior
Autoria: Neste work analiso como feirantes e consumidores de pirarucu (Arapaima gigas) salgado classificam as diferentes formas de composição (cortes) e circulação desse pescado estabelecendo uma hierarquia entre seus atributos físicos a partir do gosto culinário (BOURDIEU, 1983) de determinados fregueses. Esse ordenamento é o elemento fundamental para a elaboração do regime de valor (APPADURAI, 2008) dessa mercadoria na feira da 25 de Setembro e se expressa tanto na organização estética do espaço, nos preços das mercadorias, quanto nas maneiras de atender as solicitações dos clientes. Dessa forma, procuro compreender em que medida a produção dos padrões e critérios que conformam a etapa de mercadoria do pirarucu se relacionam com as diferentes maneiras pelas quais esse pescado troca de mãos. Nesse sentido, pretendo identificar e descrever como, em algumas situações, o elevado potencial mercantil de determinados cortes os levam a condição de dádivas ou esmolas, escapando, assim, à etapa de mercadoria. A complexidade que envolve o comércio desse peixe se deve, em parte, ao lugar que ocupa na gastronomia da Capital Paraense, dimensão que será abordada a partir da análise do volume da circulação desse alimento, nas feiras, às vésperas de festas marcadas pela comensalidade e exo cozinha como a Semana Santa, o Círio de Nazaré e as Festas de Final de Ano. O material que analiso é resultado do work de campo de minha dissertação (COSTA, 2018) que consistiu em: observação participante nos equipamentos de mercearia daquela feira, realizada entre os meses de fevereiro e julho de 2016, quando trabalhei para uma das comerciantes de pirarucu, observação direta nas outras feiras da cidade, bem como do levantamento, organização e cotejamento de dados secundários da Secretaria Municipal de Economia e do Instituto de Meio Ambiente e Recursos Naturais, sobre o comércio de pirarucu salgado na Capital paraense. Identifiquei, na experiência com as feirantes, que as diferentes formas de circulação desse pescado concretizam os valores diferenciados de seus cortes ao produzir distinção entre os consumidores. Esse efeito do consumo tem como fundamento as preferencias culinárias, classificadas e reconhecidas como de bom gosto, de um grupo de fregueses regulares, cujos membros ocupam posições profissionais e econômicas elevadas aos olhos das fornecedoras. A imbricação entre gosto culinário, reconhecimento, distinção, dádivas, crédito e valores transforma a circulação do pirarucu salgado em um fenômeno econômico e cultural através do qual lucro comercial e prestígio social são buscados simultaneamente.
Percursos e formação do mercado: a construção do mercado de cerveja artesanal brasileiro
Autoria: Andrey Felipe Sgorla
Autoria: A pesquisa analisa aspectos da construção do mercado de cervejas artesanais no Brasil, a partir dos percursos de empresarialização de cervejeiros artesanais, dos valores e representações nos quais, a partir de uma estrutura de oportunidades sociais, econômicas e de recursos permitem a transformação de um hobby em uma atividade empresarial. Para elaborar esta pesquisa realizei incursões etnográficas, por meio de mapeamento de cervejarias localizadas no Rio Grande do Sul, visitas a cervejarias, participação de eventos cervejeiros e incursões netnográficas em grupos, perfis e páginas de cervejarias artesanais no Facebook, para acompanhar as discussões existentes nestes espaços, realizamos onze entrevistas em profundidade com cervejeiros, visando explorar as diversas esferas da vida dos entrevistados, na qual as histórias são formas em que as pessoas fazem sentido de suas vidas e, compreender a subjetividade do cervejeiro e sua visão do mercado de cerveja artesanal. A expansão de microcervejarias nesta década é decorrente de um percurso de empresarialização de cervejeiros artesanais, que transformam um hobby de fazer cerveja em casa, em panelas, em uma nova carreira, reconvertendo suas trajetórias profissionais para a identificação como cervejeiro artesanal, cuja forma identitária assenta na valorização do work independente, na qual são atores imersos em uma estrutura de relações sociais que constrói uma identidade para si e para os outros, relacionada com as suas cervejas e o mercado de cervejas artesanais. O desejo de ser empresário de si dá visibilidade a um sistema de crenças que se fundamenta na autonomia e na iniciativa, da individualização e da responsabilização individual de que trata Beck (2011), na qual cada um é responsável por si, num mundo marcado pela incerteza, pelo risco e pela complexidade, que se fundamentam com base num presente onde impera “o novo espírito do capitalismo” (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2009), no qual mostram adesão às novas liturgias sociais: a performance, a soberania e a gestão de si (ALVES, 2009). Os cervejeiros lidam com os desafios contemporâneos do mercado de work e da empresarialização de si como pessoa e profissional, na qual a formação do mercado passa por suas identidades profissionais e organizacionais, na relação com os consumidores, na estreita colaboração entre cervejarias por meio de troca de receitas e de fornecimento de ingredientes, e também como identidade coletiva e de oposição as cervejarias industriais, tendo a paixão com um ativo, que reforça relações pessoais, e a qualidade do produto, através da seleção ingredientes e da criação de receitas, como garantia de cervejas autênticas, pois cada garrafa contém histórias que contam a formação do mercado de cervejas artesanais.
Quando vale a/o artista?: Corpos de atrizes e atores e a relação com o mercado
Autoria: Bernardo Fonseca Machado
Autoria: “Vocês são a mercadoria” asseverou o professor para um grupo de jovens atrizes e atores: “se vocês não tem boas roupas e fotos descentes, como eu posso trabalhar?”. O teatro, como arte, depende do corpo humano como material fundamental para a cena. Sem sua materialidade, o evento cênico não se realiza. No recrutamento de artistas para personagens de determinadas peças, um vocabulário econômico costuma informar as práticas de seleção e constituir a própria noção de pessoa. Entre 2015 e 2016, realizei pesquisa de campo em duas escolas de teatro – uma em São Paulo e outra em Nova York. Práticas diárias de canto, interpretação e dança ocupavam a agenda de aspirantes intérpretes. Em paralelo, e com equivalente relevância, aprendiam técnicas para “se vender”. O programa curricular previa a capacitação para os testes de elenco. Na disciplina denominada “audição”, ensinava-se a importância de dominar a etiqueta de work. Era urgente tomar ciência a respeito da posição que poderia ser ocupada no “mercado” – qual “tipo” de personagens o corpo permitiria executar (protagonista, vilão, cômico e afins). Em Nova York, um dos professores salientou: “Não basta ser o melhor cantor e dançarino do mundo. Se você não for profissional, isso me faz questionar você. Você não estará se vendendo. E você tem que se vender: o melhor tipo [para o papel desejado], seu alcance vocal, como você se relaciona com a personagem”. Simultaneamente, nas aulas de interpretação, alunas e alunos aprendiam a “extrair” suas emoções internas, “dominá-las”, e, por fim, apresenta-las para a plateia. Cobrava-se das/os estudantes o gerenciamento de sentimentos: a exibição adequada de traços faciais e expressões corporais condizentes com o papel designado. Fazia parte de sua profissionalização serem capazes de se expressar com precisão e eficácia. Somente uma “emoção verdadeira” valeira o ingresso do público. A apresentação investigará a associação entre intérpretes e mercadoria. O que significava o reiterado emprego de um vocabulário econômico para tratar de artistas da cena? O que está à venda nas transações que envolvem atrizes e atores? Esses corpos, treinados para produzir emoções, ganham valor sob quais contextos? Conforme defende Zelizer (2010), pessoas estão constantemente agregando valor econômico à vidas humanas e defendendo posições baseadas nesses valores. Nesse sentido, a discussão a respeito da mercantilização de atrizes e atores pode acrescentar novas considerações à discussão da relação entre mercados, afetos, pessoas e imaginários.
Rastreando o turismo não hegemônico: hospitalidade, negócios e ambiguidades nos mercados de hospedagem em Florianópolis
Autoria: Herbert Walter Hermann
Autoria: O presente work tem por objetivo descrever as ambiguidades e as misturas entre práticas econômicas e familiares no turismo em Florianópolis, assumindo a hospitalidade como objeto. A partir da etnografia que realizo no Sul do Brasil, desde 2016, sobre um turismo praticado por gente do povo, pretendo demonstrar como as casas nos balneários e as famílias locais criaram enfeixes essenciais para realização de práticas turísticas na região. A relação entre turistas e a população local, intimamente ligada às hospedagens nas casas, visibiliza, assim, dinâmicas que borram a fronteira entre o econômico e o social, o cálculo e a reciprocidade, o público e o privado. A antropologia econômica vem problematizando a questão da “economia dos sonhos numa sociedade real” (Callon e Latour, 2013, p.38) em que necessitamos estudar o mundo concreto em suas próprias práticas (Çaliskan e Callon, 2009, 2010; Callon, 2013). Para isso, Callon (2013, p.344) recomenda abandonar as definições existentes sobre mercados e avançar na descrição de mercados concretos atuais. Nos termos do autor a ênfase passaria a reconhecer que tipo de relações – também sociais – os mercados concretos contribuem em agenciar. Nesse sentido, busco apresentar como a hospitalidade possui certos agenciamentos, assemblages em dois universos intimamente relacionados ao turismo em Florianópolis: o da hospedagem de amigos e parentes; e o do aluguel de temporada, exibindo suas vinculações e diferenças na formação de mercados no turismo. O work etnográfico se pautou na utilização de diversos instrumentos de pesquisa, tais como: conversas informais, entrevistas, análise de dados estatísticos, investigação em plataformas virtuais, acompanhamento em viagens, observação participante e a mudança da minha própria residência para Florianópolis. As etnografias no turismo, em diferentes partes do globo, vêm nos ensinando que o próprio idioma da hospitalidade é frequentemente mobilizado em serviços no turismo e pode envolver regimes lucrativos de reciprocidade (Tucker, 2003) e, até mesmo, reconstituir as “relações produtivas tradicionais” a partir do envolvimento da população local em negócios do turismo (Alcázar Campos, 2010; Adams, 1992). Contudo, ainda é incipiente nessa literatura como nas e partir das hospedagens nas casas ocorrem agenciamentos (Callon, 2013) que delineiam um modo de constituir arranjos econômicos, materiais, morais e/ou afetivos. A apresentação desse work visa contribuir no alargamento de entendimentos sobre as formas de fazer turismo no Brasil. A interseção desse campo com os aprendizados e debates propostos pela antropologia da economia mira, também, adensar descrições e informações sobre a formação de mercados no turismo.
Serviços socioambientais e modos de vida tradicionais: reflexões sobre valor e valoração a partir do extrativismo na Terra do Meio (PA)
Autoria: Roberto Sanches Rezende
Autoria: Desde a década de 1990, a avaliação dos serviços ecossistêmicos e ambientais tem sido tratada por economistas como alternativa para a regulação do clima e a manutenção e promoção da diversidade ecológica do planeta (Motta, 1998), resultando na criação de mecanismos e programas para transacionar e remunerar serviços ambientais, como o REDD, o Bolsa Verde, o Produtor de Águas e o Bolsa Floresta. Os pagamentos por serviços ambientais (PSA) representam formas econômicas de incentivar e promover ações humanas que têm impacto positivo na reprodução e manutenção do funcionamento dos ecossistemas (Wunder, 2005). Do ponto de vista da economia, a criação de tais mecanismos depende da avaliação e valoração de elementos da natureza em termos monetários, de modo que promova a escolha racional dos agentes econômicos por atividades que incrementam os serviços ecossistêmicos. Em relação às experiências de pagamentos por serviços ambientais com povos tradicionais, elas têm recebido críticas diversas, seja por focarem em mecanismos binários de controle da paisagem, por se assemelharem mais a programas de transferência de renda, ou por violarem direitos humanos e restringirem modos de vida tradicionais (Eloy, Coudel e Toni, 2013; Faustino e Furtado, 2015). O work aqui apresentado trata da elaboração em progresso de um sistema de pagamentos por serviços socioambientais nas unidades de conservação da Terra do Meio (Altamira, PA). Um dos princípios orientadores para a construção desse sistema é que ele respeite os regimes de propriedade e justiça locais. Outro é que evidencie o papel das atividades humanas e do extrativismo na reprodução da floresta e seus ciclos ecológicos. Esses dois princípios implicam em avaliar aspectos não-econômicos dos modos de vida tradicionais, acentuando a interdependência entre processos num contexto em que terra e work não passaram pela mercantilização moderna (Polanyi, 2013). Demonstrar os ganhos ecológicos do extrativismo e estruturar um sistema de remuneração dos serviços prestados por essas atividades também implica na ressignificação de conceitos econômicos como o de adicionalidade e condicionalidade, utilizados nos sistemas convencionais de pagamentos por serviços ambientais, bem como na abordagem da questão dos direitos de propriedade sobre os serviços prestados em áreas protegidas. Como pano de fundo dessa discussão está o debate antropológico sobre valor e valoração, o que implica colocar em perspectiva as formas econômicas locais e as globais, nesse caso tomando a narrativa econômica neoclássica que fundamenta a valoração como uma forma particular de pensar o valor da sociobiodiversidade (Mirowski, 1984; Hann e Hart, 2011; Graeber, 2001, 2006; Munn, 1992).
Significados, critérios e visões sobre “ser pobre” entre beneficiárias do Programa Bolsa Família
Autoria: Michele de Lavra Pinto
Autoria: No Brasil há uma crescente produção multidisciplinar de works que discutem e analisam os efeitos das Políticas Públicas, entre as quais as Políticas de Transferência de Renda com condicionalidades, e seus impactos para erradicação da pobreza e/ou redução da desigualdade no país. O Bolsa Família (PBF), criado em 2003, é um programa cujo o objetivo é auxiliar famílias em situação de pobreza. O programa estabeleceu uma linha de pobreza em que o principal critério é a renda per capita. Rego e Pinzani (2013, p. 149) salientam que o problema de analisar a pobreza somente pelo critério da renda é que este último não diz tudo sobre o nível de bem-estar dos indivíduos, o que torna a sua definição e critérios, por vezes, imprecisos. Sendo assim, há ampla margem para definir os critérios de pobreza, criando a necessidade de uma visão multidimensional sobre a temática (Sen, 2000). Mas, o que as famílias beneficiárias consideram ser “pobre” no meio urbano? E que significados dão a pobreza? O objetivo neste work é dar voz e mostrar a visão “do pobre” sobre si mesmo, suas condições econômicas e as diferenças sociais que cercam seu cotidiano no local o qual residem. Ou seja, o que faz um indivíduo e/ ou família ser colocada, classificada como pobre? Que critérios relacionados a bens e ao consumo estabelecem a condição de pobreza para as beneficiárias do programa e suas famílias? Portanto, a perspectiva aqui apresentada é da pobreza como um fenômeno social, complexo, histórico e com múltiplas dimensões. Para atingir os objetivos propostos foi realizada uma pesquisa de abordagem qualitativa e técnicas de observação de cunho etnográfico e entrevistas em profundidade com beneficiárias do PBF. A pesquisa demonstra, através das beneficiárias do programa e suas famílias, uma diversidade de significados do que é “ser pobre”, e assim da pobreza. Significados que não são cristalizados na renda, embora esta seja mencionada. Bem como, a distinção entre as famílias com “mais condições” e as “mais pobres” (estas beneficiárias do PBF), relacionadas à posse de certos bens, como carro e eletrodomésticos, mas também às condições da moradia e de vida, às características do work, à escolaridade e ao recebimento de alguma forma de assistência social. O recebimento do benefício como sinônimo de pobreza se mostra interessante, pois evidencia a heterogeneidades entre as famílias de baixa renda.
Ter pessoas na venda: olhares etnográficos a partir do Haiti e da República Democrática do Congo
Autoria: Rosa Cavalcanti Ribas Vieira, Felipe Evangelista
Autoria: O presente work propõe um contraste entre duas etnografias realizadas com mulheres comerciantes no Haiti e na República Democrática do Congo para discutir a noção de “pessoa minha” ( moun pa-m ou moun mwen em créole; mutú nangai em lingala). O nosso objetivo é fazer um levantamento dos contextos em que estas expressões foram mobilizadas para realizar um exercício de aproximação e diferenciação, através do qual se observará: quais relações são definidas por estas categorias, os significados de se ter pessoas, quais os usos e extensões destas categorias no comércio, quais as implicações de se ter pessoas, quais são os vínculos, obrigações e expectativas entre pessoas que são umas das outras, o que circula (dinheiro, objetos, produtos, parentes) nessas relações. Os works de campo feitos na comuna de Belladere (Haiti central) e na cidade de Matadi (província do Congo Central), centraram-se no acompanhamento e participação cotidiana no universo da venda de produtos diversos da qual dependem muitas casas haitianas e congolesas. As notas etnográficas resultantes destas pesquisas indicam que estas categorias são mobilizadas entre as comerciantes para fazer referência às relações com pessoas que não são consideradas necessariamente parentes, mas que são vistas como relações de confiança, de amizade e, muitas vezes, de parceria e cooperação na venda. Todavia, sugerimos que estas relações devem ser compreendidas tendo em vista a associação das categorias moun pa-m e mutu nangai a outras noções que remetem ao compartilhar, comer e viver junto, como, por exemplo, a expressão fanda em lingala. Neste sentido, a presente discussão permitirá transitar entre a antropologia econômica e a antropologia da casa e do relatedness, sugerindo uma perspectiva crítica dos debates sobre economia informal e “économie de la débrouille”. Paralelamente, colocar as já citadas pesquisas etnográficas em diálogo possibilitou duas reflexões que percorrem este work. De um lado, viabiliza problematizar o olhar etnográfico, fazendo-nos pensar por quais motivos ambas etnografias se depararam com categorias que remetem a uma mesma tradução (pessoa minha) e nos indagarmos se isso não seria resultado de observações "direcionadas", estruturadas por uma mesma literatura antropológica. De outro lado, também permite discutir sobre etnografia e envolvimento. As análises do cotidiano das comerciantes se desenvolveu à medida que fomos incluídos no universo de relações de proximidade de nossos interlocutores. Passamos a ser vistos enquanto parte da família e da casa ou também como possíveis parceiros nos negócios, sendo classificados, por vezes, como "pessoa deles", "branco/a deles", "do mesmo sangue", "mesma pessoa", o que nos colocou numa série infinita de trocas.
“Seu futuro vale ouro”: mercado de ensino superior, “Classe C” e discurso publicitário
Autoria: Renata Mourão Macedo
Autoria: Neste paper, analiso o discurso publicitário do ensino superior privado voltado para a captação de “novos consumidores de diplomas”, especialmente os da “classe C”, conforme linguagem do mercado. Embora muito se discuta o protagonismo, ou não, da categoria classe social no debate sobre marcadores sociais da diferença, o tema da estratificação e mobilidade social ganhou relevância em período recente no Brasil. Conforme demonstram diversas pesquisas, entre 2001 e 2013 o debate sobre a categoria classe esteve no centro de disputas fervorosas entre economistas, cientistas sociais, políticos e agentes do mercado. Assim, termos como “nova classe média”, “classe C”, “nova classe trabalhadora”, entre outros, foram amplamente mobilizados no período. A partir de 2015, com o adensamento da crise político-econômica, progressivamente o debate sobre classe foi saindo do centro do debate público. Isso, no entanto, não significa que o marcador classe social deixou de ser importante para compreendermos alguns processos sociais no Brasil recente. Em minha pesquisa de doutorado em Antropologia Social, em andamento, tenho me debruçado sobre dois tipos de narrativas que articulam marcadores sociais de gênero, classe, raça e geração: de um lado, a escuta de narrativas de estudantes universitárias mulheres, em sua maioria de classes populares, sobre suas escolhas no ensino superior privado não confessional; de outro lado, os discursos constituídos pelo mercado de ensino superior sobre os “novos consumidores de diplomas”. Neste texto, discuto a circularidade entre as narrativas dessas mulheres e as campanhas publicitárias do mercado de ensino superior privado, muito presente na cidade de São Paulo e tido por diversas estudantes como uma referência para a escolha da instituição. Nesse sentido, analisando algumas campanhas publicitárias do mercado de ensino superior entre 2016 e 2018, é relevante notar como as categorias de gênero, raça e classe também se produzem simultaneamente na busca por consumidores-estudantes potenciais.
“Tratando das dívidas”: o atendimento aos consumidores superendividados no Rio de Janeiro
Autoria: Viviane Marinho Fernandes
Autoria: O presente artigo, através da abordagem etnográfica, concentra-se no work desenvolvido pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro no “tratamento” destinado a um grupo de consumidores identificado como “superendividados”. Ao acompanhar as rotinas do Nudecon (Núcleo de Defesa do Consumidor), pude aproximar-me das atividades de profissionais que, através de diferentes técnicas e ferramentas, trabalham com intuito de reconhecer e classificar os consumidores como “superendividados” para, então, atuar em sua proteção e orientação. A discussão desenvolvida no artigo estará organizada em três partes. Na primeira delas descrevo, de forma breve, o modo como o fenômeno do superendividamento vem sendo debatido no Brasil, principalmente no âmbito jurídico, produzindo reflexões que servem de base para a construção de intervenções públicas. Em seguida, apresento as técnicas desenvolvidas pelos profissionais do Nudecon para a identificação e classificação do “consumidor superendividado”. Ao acompanhar as rotinas do Núcleo, chamo a atenção para a importância das tabelas e planilhas como artefatos essenciais na avaliação do superendividamento. A relevância dos documentos e das ferramentas de cálculo saltam aos olhos, primeiro devido ao fato dos documentos terem papel central dentro da burocracia jurídica, mas, especialmente, devido à relevância de determinados cálculos e dispositivos de medidas para a compreensão e visualização da dívida. O preenchimento de planilhas e questionários, bem como a produção de gráficos e tabelas tornam-se técnicas centrais para o reconhecimento e categorização do consumidor como superendividado. Por fim, uma vez mensurado o endividamento, concentro-me nas técnicas jurídico-administrativas utilizadas pelos Defensores Públicos para elaborar soluções para os problemas apresentados pelas pessoas. As narrativas sobre organização dos orçamentos individuais e familiares, sobre o uso do crédito e os cálculos realizados no emprego dos recursos - que aparecem nos atendimentos do Nudecon - direcionam-me às discussões centrais da antropologia da economia, dedicada à compreensão das práticas financeiras das pessoas. Ao observar o work de orientação aos consumidores classificados como superendividados, busco refletir sobre como indivíduos e famílias estão vivenciando processos de endividamento em suas rotinas e como o Estado aparece intermediando a relação conflituosa entre estes e instituição financeiras.